quarta-feira, 21 de maio de 2014

Telegrama comprova que Roberto Carlos já apoiou abertamente a censura

“Cumprimento Vossa Excelência por impedir a exibição do filme Je Vous Salue Marie, que não é obra de arte ou expressão cultural que mereça a liberdade de atingir a tradição religiosa de nosso povo e o sentimento cristão da humanidade. Deus abençoe Vossa Excelência. Roberto Carlos Braga.''

O remetente deste telegrama, como informa a assinatura, foi o compositor e cantor Roberto Carlos. O destinatário, o então presidente da República, José Sarney. A data, o comecinho de 1986 (o Palácio do Planalto divulgou-o em 7 de fevereiro daquele ano). O motivo, a decisão do governo, implementada por meio da Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal, de proibir a exibição do filme “Je Vous Salue Marie'', do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard. O primeiro governo pós-ditadura, ainda impregnado pelos valores autoritários que haviam presidido o país por 21 anos (1964-1985), alegou que o obra de Godard blasfemava contra a Virgem Maria. Formalmente, o Estado era, e ainda é, separado da Igreja. Contudo, a Maria do filme, personagem contemporânea, engravida mesmo sendo virgem. O dogma não é contestado. Mesmo se fosse, tratava-se de obra de arte que a administração Sarney impediu ser assistida nos cinemas. Em artigo sobre “Je Vous Salue Marie'', publicado na “Folha de S. Paulo'' em 2 de março de 1986, Caetano Veloso mencionou a “burrice de Roberto'' e escreveu que “o telegrama de Roberto Carlos a Sarney, congratulando-se com este pelo veto a 'Je Vous Salue Marie', envergonha nossa classe''. Mais Caetano: “o veto é uma violência cultural e uma vergonha política''; “vamos manter uma atitude de repúdio ao veto e de desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apoiam''. A mensagem de Roberto Carlos 28 anos atrás não constitui fetiche arqueológico. Ela contribuiu para iluminar o presente. O brilhante artista, o mais popular do Brasil, recorreu com sucesso à Justiça e proibiu a biografia “Roberto Carlos em detalhes'', de autoria do jornalista, historiador e professor Paulo Cesar de Araújo. O livro, como sabem aqueles que o leram, é muito simpático ao biografado, de quem o excelente biógrafo é fã confesso.



Desde 2013, com o incremento do debate público acerca da norma legal _artigos 20 e 21 do Código Civil_ que permite impor censura prévia a biografias e outras produções culturais, acadêmicas e jornalísticas, Roberto Carlos oscila nos seus pronunciamentos. Diz que é contra a censura, mas batalha no Supremo Tribunal Federal para manter a legislação como está. O Brasil é a única grande democracia do planeta a autorizar censura prévia a biografias que não sejam chapa-branca. Paulo Cesar de Araújo acaba de lançar seu relato sobre o imbroglio que resultou na decisão judicial de proibir a circulação da biografia. O novo livro se intitula “O réu e o rei: Minha história com Roberto Carlos, em detalhes'', é editado pela Companhia das Letras e representa um documento histórico sobre um tempo em que o direito à liberdade de expressão ainda sofre golpes. Hoje, as manifestações públicas de Roberto Carlos sobre um tema caro à democracia e aos cidadãos variam de acordo com a conjuntura e as marés. O telegrama a Sarney evidencia, sem eufemismos, que o artista considera legítimo e chancela o controle do Estado sobre o acesso dos brasileiros à arte e à cultura. Trocando em miúdos, Roberto Carlos é amigo da censura.

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