Adaptando em "Deus da Carnificina" a peça homônima da francesa
Yasmina Reza, encenada no Brasil em 2011, o diretor franco-polonês Roman
Polanski extraiu o melhor da qualidade do texto, aliando-se à própria
autora como corroteirista e a um notável quarteto de atores: Jodie
Foster, Kate Winslet, Christoph Waltz e John C. Reilly.
Tirando bom partido do confinamento previsto no
texto original, cuja ação se passa na sala de um apartamento, Polanski
desdobra as muitas nuances de um duelo verbal feroz entre dois casais.
Um deles, formado pelos pais de um garoto que agrediu o filho do outro
com um pau, quebrando-lhe dois dentes. Os dois meninos são colegas de
classe.
O incidente, corriqueiro na aparência, é o
rastilho de pólvora que vai incendiar quatro personagens de origens
sociais e culturais diferentes, cada um representando posições em choque
sobre diversas questões explosivas no mundo atual - o politicamente
correto, a mobilização por causas do Terceiro Mundo, as regras da vida
em comunidade, as diferenças entre homens e mulheres, os sacrifícios
pessoais exigidos pelo casamento.Polanski faz justiça ao texto, assinando um
filme notável por sua intensidade minimalista ao sustentar a ironia que
se infiltra nas entrelinhas. Além de estar à vontade dentro deste tipo
de cinema claustrofóbico, que ele cultivou tão bem em trabalhos
anteriores, como "A Faca na Água" (1962), "Repulsa ao Sexo" (1965) e "O
Inquilino" (1976), o diretor recebeu um inesperado e desagradável
reforço adicional: foi durante os sete meses de sua prisão domiciliar,
em seu chalé na Suíça, em 2009, que ele produziu este roteiro.A prisão foi ainda um rescaldo da velha
pendência com a Justiça norte-americana, relativa a um suposto estupro
contra uma menor, 35 anos atrás.Inovando em relação à montagem teatral, Polanski
incorpora ao filme duas sequências externas, filmadas num parque de
Nova York por um de seus assistentes - já que ele pode ser preso se
voltar ao país -, inclusive a própria briga dos meninos que deflagra a
guerra entre seus pais. Além disso, o diretor acrescenta uma ácida
conversa do casal Nancy (Kate Winslet) e Alan Cowan (Cristoph Waltz) no
banheiro, inexistente no teatro.Filme e peça apoiam-se fundamentalmente na
notável artilharia verbal do texto original, que serve à perfeição não
só para delimitar as diferenças entre os personagens, como para
escancarar como são frágeis as máscaras sociais, como a educação, a
cultura, até os modos à mesa. Não é um panorama muito otimista do estado
geral da civilização, alguns milênios depois da saída dos homens das
cavernas, mas certamente sua ironia é uma digna forma de encará-lo.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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