Especial para o UOL*
- Ana Carolina Fernades/ReutersCaetano Veloso em show no evento "Rio + 20" no Forte de Copacabana, zona sul do Rio (2012)
Na data redonda dos 70, cabe a pergunta fatídica: qual, entre os 1001 Caetanos, é o Caetano que importa, faz a diferença, impulsiona a história de seu (nosso) país para frente, será lembrado e celebrado com júbilo daqui a 50, 100, 200 anos? O artista tropicalista inquestionavelmente inspirado é a resposta óbvia e suficiente. Tentemos fugir do óbvio.
Desde a eclosão tropicalista de "Alegria, Alegria" (1967) e "Divino, Maravilhoso" (1968), a grande contribuição de Caetano à cultura brasileira tem sido a de agir bravamente em prol da distensão de costumes num país (inicialmente) sob ditadura. Entre muitos participantes engajados ou circunstanciais do movimento, o triunvirato formado por Caetano, Gal e Gilberto Gil virou nosso imaginário de pontacabeça no campo fechado e opressivo do comportamento.
No advento da Tropicália, Gil, negro vestido em batas africanas, e Gal, de cabeleira black power, simbolizaram o levante racial. Gal e Caetano, de gestual e vestuário femininos, glamurosos, sopraram ventos feministas, sob o refrão romântico "Baby, baby, I love you". Caetano, Gal e Gil, cada um à sua maneira, borraram distinções raciais, de gênero e de identidade sexual. Caetano, mais que qualquer outro tropicalista, deixava no ar o gesto gay, a sexualidade múltipla, o Stonewall à baiana, o direito masculino à superação das prisões corporais e mentais da masculinidade.
Caetano, Gal e Gil, cada um à sua maneira, borraram distinções raciais, de gênero e de identidade sexual
Na virada de 1968 para 1969, quando a tempestade tropicalista mudava para sempre os rumos da quase sempre contida e conservadora música "popular" brasileira, a ditadura militar selecionou Caetano e Gil, justamente eles dois, para o exílio político. Até hoje não compreendemos exatamente os porquês dessa escolha dos militares (por que Caetano e Gil?, por que não Chico Buarque?). Mas quanto mais os anos passam mais parece evidente que os cabelos desgrenhados, a postura hippie, os gritos primais e a carranca africana e as bichices de Caetano e Gil incomodaram a ditadura como nunca incomodaram os terninhos de Chico e Edu Lobo ou as golas engomadas de Elis Regina e Nara Leão.
Como qualquer figura contraditória por natureza, Caetano acabou por encarnar várias das contradições e dualidades que principiou denunciando. Após combater a caretice de agressividade enrustida da MPB de festival, ele se uniu a Gil, Gal, Chico, Tom Zé, Elis, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, (por que não?) Roberto Carlos e inúmeros outros na composição de uma nova elite, uma elite MPB. Mesmo em silêncio, tornou-se feroz na defesa corporativa dos seus, em inúmeras ocasiões.
Caetano se mantém na dianteira (ao lado de Chico) entre os mais influentes e barulhentos artistas/ agentes políticos da geração deles
Mais uma vez, a história o atropelou. O modo Gil de encarar o mundo apossou-se do Ministério da Cultura, e Caetano conservou-se em cima do muro. Com Ana de Hollanda, o modo Buarque - tradição, sobrenome, propriedade - ocupou o MinC, e Caetano conserva-se em cima do muro. A hesitação é face feia da ambivalência, o grande valor positivo que Caetano introduziu indelevelmente na tal MPB.
Até aí ele conta com enorme adesão, suficiente para mantê-lo na dianteira (ao lado de Chico) entre os mais influentes e barulhentos artistas/agentes políticos da geração deles. A ambiguidade de Caetano é o que o aproxima de nós, tanto de quem o ama quanto de quem o odeia. E ele, esse cara, assimilou na surdina a máxima cantada por Elis em 1979, de que "o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões". Rei-leão mais sutil que o outro "rei" da canção nacional (Roberto Carlos), mantém sob seu poder hipnótico, igualmente, os amantes e os odiantes. Nesse caso, para os bens e para os males, somos nós, mais que nosso espelho-narciso-exemplo Caetano, os verdadeiros ambíguos, indecisos, ambivalentes, contraditórios.
* Pedro Alexandre Sanches, 44 anos, é jornalista, crítico musical e autor dos livros "Tropicalismo - Decadência bonita do samba" (2000) e "Como dois e dois são cinco" (2004).
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