segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"O Erasmo sozinho pensa diferente do Erasmo com Roberto", diz Tremendão

O cabelo grisalho parco e rebelde, as pulseiras e cordões enrolados no punho, a calça jeans surrada. Erasmo Carlos ainda é rock and roll. Para manter a sua fama de mau, ele volta com mais peso, e com o recente disco, "Gigante Gentil", carregado de versos sobre um tema que lhe é caro desde a jovem guarda: amor e sexo. Nada de "vou cavalgar por toda a noite, por uma estrada colorida", como no clássico "Cavalgada", escrito por ele com o parceiro Roberto Carlos em 1977, com quem ele não compõe há oito anos --"A gente nunca se vê", admite. Erasmo agora fala do "alvo devasso" e da "flecha mortal" em "Caçador das Deusas" ["ela sangrava e ardia, vivendo aquela morte que não existia"]. "Estou falando mais do orgasmo e minhas visões são outras. O Erasmo Carlos sozinho pensa diferente do Erasmo com o Roberto. O Erasmo quando pensa sozinho, ele viaja muito, cara", explica ao UOL, em um hotel em São Paulo.

Enquanto Roberto Carlos prefere desdenhar dos hinos juvenis da época, como "Quero que Tudo Vai pro Inferno", por conta de suas superstições, Erasmo, literalmente, abraça o capeta. Canta a música em versão quase metaleira no novo show, que estreia no sábado (6) em São Paulo, no HSBC Brasil, com participação de Marcelo Jeneci e o guitarrista Luis Sérgio Carlini. O cantor que gravou a ode à maconha "Maria Joana" em 1971, hoje se mostra completamente contrário às drogas. Chega até a defender a proibição que a canção sofreu na época. "O tempo me mostrou que estava certo aquele tipo de censura. Fico com o sexo e rock n' roll, drogas nunca mais". Recentemente, ele mesmo foi acusado de censor por defender veementemente o direito à privacidade contra as biografias não autorizadas. Ele diz que mantém as mesmas convicções, mas que sua fala foi deturpada na época. "Eu acho ridículo essa coisa de ter que pedir autorização para fazer biografias", garante. Na capa do disco, em uma ilustração chapante do designer Ricardo Leite, Erasmo aparece cercado de demônios. No centro, em destaque, pousa protegido por armaduras. A entrevista termina e ele aponta para imagem: "Quem te deu a entrevista foi esse aqui".

UOL - Com "Gigante Gentil" você completa a trilogia do rock, que começou com "Rock N' Roll" (2009) e se seguiu com "Sexo" (2011), em um momento em que o gênero, aqui e lá fora, não está em seus melhores dias de popularidade. Como é ser um roqueiro aos 70 e poucos anos?
Erasmo Carlos - Ah, cara, para mim é a mesma coisa. Eu não ligo se está em evidência ou não, por que é o que eu sinto, é o que eu sei fazer de melhor, em termos musicais. Fazer música de qualidade, seja ela qual for, sempre terá sua hora e seus seguidores.
Mas, no show, as últimas canções ganham peso. Existe o resgate.
Eu tinha abandonado isso um pouco durante os anos. Eu fiz discos com muito teclado, sabe? E isso incomodou meus fãs. Eu tenho vários tipos de fãs. Procuro me direcionar para os fãs que gostam de mim roqueiro, mais do que o fã da minha parte romântica do Roberto Carlos. Prefiro agradar o cara que compra meus discos, sabe da minha vida, o Erasmo Carlos roqueiro. É o tipo de fã meu que eu mais gosto.
"Gigante Gentil" reforça um tema dos outros álbum: o sexo. É um assunto recorrente em seu trabalho, mas existe uma diferença entre a letra de "Cavalgada" e a de "Caçados das Deusas". Você está falando mais de orgasmos do que de sentimentos?
É verdade, estou falando mais do orgasmo e minhas visões são outras. O Erasmo Carlos sozinho pensa diferente do Erasmo com o Roberto. O Erasmo quando pensa sozinho, ele viaja muito, cara. Essas imagens me fascinam, essa coisa fantasiosa e fantasmagórica. Tratando do mesmo tema, o meu é sobre o orgasmo puramente. O "Cavalgada" também, mas, por ser uma visão robertiana, tem a preocupação de ser uma imagem para salão. Eu não faço a menor questão que minha linguagem seja de salão.
É uma visão madura sobre o sexo também?
Lógico, sou maduro. Senão seria uma visão infantilóide. Eu gosto dessas imagens cinematográficas e, por que não, de quadrinhos. Minha cultura sempre foi essa. Imagino as letras como cortes, cortes cinematográficos. Sempre foi assim, desde o início.
"50 Tons de Cor" é uma referência ao livro "50 Tons de Cinza"...
Eu gostei do tema, da comparação do universo do cara, associar cores com a dor.
O tempo me mostrou que estava certo aquele tipo de censura. Fico com sexo e rock and roll, drogas nunca. Essa história de sexo, drogas e rock and roll também é coisa de pessoas que ficaram escravizadas naquela época. Eu não fiquei escravizado da "Maria Joana". O rock and roll não é só rebeldia, é amor também.
Surpreendentemente, o livro se tornou livro de cabeceira inclusive de mães de família e donas de casas. Você leu?
Não li. Li na internet alguns trechos, quando começaram a falar. Perguntei para minhas amigas. "Ah, li. Ah não, não li". Quem disse que não lia, mentia. Digo isso nos shows, as meninas colocam o livro dentro de um livro de receitas, no avião colocam dentro de livros de economia. Comecei a pensar nessas coisas de cores. Não queria o cinza, botei azul e depois fui para o desbotado, que é mais minha cara. Imaginei qual seria esse amor desbotado. As pessoas se assuntam com o que leem, mas é hipocrisia. Não é possível que elas não imaginam que não exista isso, e se ela acha que é algo que só os desajustados fazem, algum problema ela tem nesse sentido. Eu nunca acho nada demais, nada perturbador. Não me assusto com o novo, ainda mais com o novo que já é velho.
Mas "Amor na Rede" é uma novidade. você fala de "chats pela madrugada", "beijos e abraços fotos, poses virtuais" e uma conversa "cara a cara no Skype". Já experimentou um relacionamento assim?
Já. Não tão exagerado quanto a música, mas já namorei mandando e-mail, usando Skype. Muito, muito. A letra é do Nelson Motta, mas eu gostei dessa coisa do amor ajudado pelo virtual. É o modernismo. Hoje em dia, não tem carta, tem e-mail, e tudo bem. Não acho que o romantismo morreu, ele só se transformou.


Temos então o rock e o sexo, mas e as drogas? A época de "Maria Joana" ficou, definitivamente, no passado?
Ficou, não é mais minha realidade. Naquela época, a droga em si era um movimento universal de contracultura, ninguém tinha, inclusive, noção do prejuízo que ela causava. Com o passar dos anos foi se tendo exemplos visíveis de como ela era boa. Droga é algo tão bom, tão gostoso, que é perigoso para caramba. Demorou-se muito para chegar nessa conclusão. Quem perdeu amigos, quem vivenciou o sofrimento da família dos drogados, chega à conclusão de que é uma coisa terrível, e não deve ser nunca elogiada. O que eu fiz, a "Maria Joana", não me arrependo, fiz em uma época em que eu achava direito fazer, hoje eu não faria.
Mas foi artisticamente importante para você?
Foi, no contexto da época. Foi ótimo para mim. A canção foi proibida, não tocaram. Tirei ela dos  shows, mas era a música que a gente acreditava que ia fazer sucesso. O tempo me mostrou que estava certo aquele tipo de censura. Fico com sexo e rock and roll, drogas nunca. Essa história de sexo, drogas e rock and roll também é coisa de pessoas que ficaram escravizadas naquela época. Eu não fiquei escravizado da "Maria Joana". O rock and roll não é só rebeldia, é amor também.
Falando em censura, você e os artistas do Procure Saber foram tachados de censores na época que a Lei das Biografias foi encaminhada para Câmara...
[interrompe] Me caçaram.
Na época foi um furor, mas após tanta discussão a questão continua aí, prestes a ser votada no Senado. Você continua pensando da mesma forma?
Eu sou do grupo do Procure Saber. O Procure Saber tem uma cúpula com Milton Nascimento, Chico Buarque de Hollanda, Roberto Carlos, Caetano, Gil e Djavan. Roberto Carlos saiu, entrou Jorge Ben. A polêmica também foi levantada por outras facções, até interessadas pelo outro lado da coisa. É um papo muito complexo, daí a dificuldade em falar brevemente. É deturpada, como foi no início, quando a questão foi exposta. O outro lado pode pegar uma frase fora do contexto e fazer uma manchete com aquilo. Por isso que a reserva de se expor é o cuidado para não ser mal interpretado. No Brasil as coisas que você fala são facilmente deturpadas, ou pela ignorância das pessoas, ou a má-fé das pessoas.


Uma pergunta mais direta então: A proposta agora prevê o direito de se lançar o livro sem autorização, mas com a possibilidade do biografado entrar com um processo, posterior ao lançamento, se por caso se sentir lesado. Você é favor ou contra?
Acho que o ser humano tem direito de fazer o que ele quer. Agora, os homens fizerem leis. Eu não posso andar nu porque tem uma lei. A única coisa que você tem livre, realmente, é o pensamento. Você pode pensar o que você quiser. Eu não sou contra esse negócio de biografia. Eu acho ridículo essa coisa de ter que pedir autorização para fazer biografia. Agora, chega o dono da verdade e diz: 'tudo bem, faz a biografia e se não estiver satisfeito, você chega e processa, qual é o problema?' Existe o problema. O cara vai fazer a biografia e pode ter muitas coisas questionáveis, ele vai, de certa forma, denegrir a vida do outro, foder a família do cara, e fica a lenda. "Fulano fez aquilo'. O cara processa, mas o processo leva 10 anos. Entra os advogados. O nome do cara está lá, fodido, o filho se suicidou, a mulher já o deixou. Isso é uma sacanagem. Ninguém é contra, existe esses detalhezinhos que precisam ser corrigidos. As editoras gostam disso por que elas têm interesse, por que biografia vende pra caralho. Você vê pessoas que sofrem por isso, como a Glória Perez. Ela perdeu a vida, e o cara está soltinho da vida, fazendo biografias.
É a mesma lógica do uso das canções também? O Tiririca está sendo processado por usar "O Portão" no horário político.
Não fui eu nem Roberto Carlos. Foi a editora, a Sony. Não estou me referindo à imitação, mas claro, está usando indevidamente a música. Parece-me -- não estou por dentro da situação -- que a Sony está processando o partido do Tiririca. Isso é má-fé.
Nos últimos discos, você fez canções com Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Nando Reis e, agora, com Caetano Veloso [em "Sentimentos Complicados"]. A parceria com Roberto faz tempo que não acontece. Não há ao menos uma colaboração nos três últimos discos.
Nunca mais fizemos nada, bicho. Essas músicas do Roberto que saíram agora, essa do "Furdunço", todo mundo acha que a gente fez agora, mas foram escritas há oito anos, quando compomos pela última vez. Tem duas inéditas ainda lá, não sei quando ele vai gravar lá, nem os títulos. Quando ele lançava disco todo ano, aí a gente escrevia um monte de músicas, mas agora as pessoas falam que estamos brigados. Tem gente que me dá bronca: "Você precisa compor com Roberto Carlos". Quando morreu a mulher dele, ele chegou a um estágio de dizer para mim: "As músicas românticas que eu for escrever, não vou mais compor com você, quero fazer sozinho, por que são sentimentos meus que não quero dividir com mais ninguém". Aí fizemos o "Furdunço", que não tem nada de romântico.
Mas vocês ainda mantêm contato?
A gente não se encontra, cara. A gente se telefona no Natal, Ano Novo, Dia do Amigo, de aniversário. "Tudo bem? Felicidades para você". Nunca conversamos sobre nada da vida, nos encontrávamos para fazer música. Então, a gente quase não se encontra mais. Quase não, a gente nunca se encontra.
Desde os anos 60 a parceria Roberto/Erasmo é algo mítico, quase um McCartney/Lennon. Vocês também costumavam escrever coisas sozinhos, mas assinavam  juntos?
Tem umas coisas pela vida que são mais ou menos assim. Não posso te dizer qual música exatamente, o próprio tempo nos faz esquecer. Tem coisas quase todas minhas ou quase todas dele. Isso é normal em uma parceria. As pessoas fazem uma ideia errada do parceiro, como se se encontrássemos em outro universo. Perguntam: "Qual é a história da música?" Não tem história. Precisa fazer uma música sobre o cara que corneou a mulher? Então tá, o compositor fica imaginando, como um cineasta. A história é o humor e o estado de espírito de cada um.


Impressionou a todos sua força ao subir ao palco logo após a morte de seu filho, Alexandre "Gugu" Pessoal. De uma maneira dura e realista, não menos dolorosa, imagino, você disse que o show tinha que continuar. O quão importante foi para você continuar trabalhando?
Independentemente, eu sei que o que aconteceu atrapalhou todo o processo de lançamento do disco, mas isso também me testou como ser humano, sabe, bicho? Não que eu queira ser um ser humano perfeito, claro que não sou, mas quero ser um ser um puta humano. Talvez isso sirva de exemplo para as pessoas, porque a vida continua mesmo, bicho. A vida continua. É uma parte sua que se vai. É aprender a viver uma nova realidade, sem ele. As pessoas são tão egoístas que ficam preocupadas com elas mesmas. "O que vai ser da minha vida sem ele?". E o certo é ter essa preocupação com ele. As pessoas falam: "Ah, está no céu", mas ninguém sabe. Tomara que ele esteja numa boa, porque a minha, eu sei, eu vou conseguir viver sem ele.

 

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