domingo, 16 de setembro de 2012

Ira Sachs e o sucesso do cine gay pós-armário

RAUL JUSTE LORESDE NOVA YORK
Um agente literário de prestígio em Nova York passa dois meses seguidos torrando US$ 70 mil em consumo permanente de crack e vodca, fugindo de hotel em hotel, enquanto some da vista da família, dos amigos, do namorado e dos colegas de escritório.
À beira de uma overdose, é encontrado pelo namorado cineasta. Diante da recusa do agente em deixar o hotel e buscar reabilitação, o namorado concorda em fazer companhia a ele, que recebe a visita de um garoto de programa brasileiro e continua a se drogar.
Enquanto o agente sob efeito de crack é penetrado pelo michê, o namorado envergonhado continua ali e segura sua mão, tentando lhe dar algo parecido a apoio.

A sequência de amor e autodestruição do casal está presente em duas obras radicais: o livro "Retrato de um Viciado Enquanto Jovem" (Companhia das Letras), de Bill Clegg, e o filme "Keep the Lights on" (deixe as luzes acesas), do namorado cineasta, Ira Sachs, são as duas inspiradas memórias de uma relação que tinha tudo para dar errado, mas que durou dez anos.
O livro de Clegg foi lançado em 2010 e editado em diversos países, com elogios praticamente unânimes da crítica pela linguagem enxuta e elegante com que narra sua particular descida aos infernos.
"Retrato..." faz parte de um crescente gênero literário, de sucesso crítico e de vendas, de memórias de ex-viciados, com best-sellers de autores como Augusten Burroughs ("Correndo com Tesouras", "Dry") e Marc Lewis ("Memories of an Addicted Brain"). O britânico Irvine Welsh, autor de "Trainspotting" chama a obra de Clegg de "clássico cult da literatura sobre vício em drogas".
O sucesso do livro alimentou a expectativa sobre o filme de Sachs, que estreou neste mês no circuito independente de Nova York, após ser premiado no Festival de Berlim e ganhar dez páginas da revista francesa "Cahiers du Cinéma", que o chama de "provavelmente o melhor filme do ano". Sem previsão de estreia em circuito nacional, terá exibição no Festival do Rio, que começa no próximo dia 27.
O talento das duas metades desse casal é responsável por obras potentes, tão diferentes como seus autores --e se tornaram assunto corrente nas rodas do cinema e da literatura nova-iorquinas. Ambas retratam bem o espírito de uma era-- a ascensão das autobiografias de ex-viciados e o cinema gay pós-armário, que trata as relações amorosas homossexuais simplesmente como relações humanas, deixando de lado a preocupação com a aceitação pela sociedade.
Nem o livro nem o filme caem em contos moralistas ou em ajuste de contas. Ao contrário de outras separações, que podem ser engavetadas ou transformadas em acessos de fúria, escritor e cineasta conseguem exorcizar seus fantasmas, como na melhor das terapias.
ROUPAS FORMAIS
No início da relação, o personagem que representa Clegg no filme, Paul, é o advogado de uma grande editora, com roupas formais, penteado de bom-moço e uma namorada.
O cineasta, que no filme se chama Erik, está sempre despenteado e desalinhado, não tem emprego e ainda ganha os dentes da frente marotamente separados do ator dinamarquês Thure Lindhardt.
Em certo momento, a irmã de Erik repreende o irmão por ele recusar a oferta de emprego na rede de TV pública PBS, dizendo a ele que "ser uma jovem promessa é bom aos 20", mas que aos 30 já seria sinal de fracasso.
A dupla se conhece por meio de linhas telefônicas para encontros de sexo casual, populares nos anos 90, muito antes de aplicativos para celulares como o Grindr, onde, por meio de GPS, qualquer solitário pode achar sua conquista.
Não demora até Paul abandonar a namorada e ir morar com Erik. Paul conquista os amigos do namorado, organiza uma festa surpresa em seu aniversário, compra um retrato que Erik ficou namorando em uma galeria. Aos poucos, com a alma livre, o "sem lenço e sem documento" Erik se transforma em alicerce e bússola.
O consumo descontrolado de drogas de Paul testa a devoção de Erik. Paul falta a estreias dos filmes do namorado enquanto se droga e se ocupa com garotos de programa, não responde às mensagens e aos telefonemas enquanto Erik dobra sua aposta de que a paixão pode sobreviver ao vício.
PERSPECTIVAS
A história ganha perspectivas distintas nas duas obras. No livro de Clegg, o namorado começa a virar uma voz distante, de alguém que liga de vez em quando para saber se tudo está bem e oferecer ajuda --um coadjuvante enquanto ele vive alucinações de que está sendo perseguido por agentes da polícia antidrogas.
No filme, Erik tenta salvar Paul de todas as maneiras, enquanto sua carreira começa a decolar, sem perder a esperança de que um dia a relação volte a uma normalidade há muito esquecida.
"Essa é uma relação mútua em que os dois escolhem seguir adiante, apesar de tudo contra. Quando conheci meu ex, no primeiro mês ele pegou um cachimbo de crack, o que faria metade da humanidade pedir que ele fosse procurar ajuda e só voltasse limpo", relembra Sachs, em entrevista à Folha.
"Mas a outra metade é como eu. 'Vamos nos mudar e viver o resto da vida juntos?' Eu era inteligente, informado, mas acreditava que poderia salvá-lo e que essa era a minha tarefa. Acreditava que, sem meu parceiro, eu não era nada."
O roteirista carioca Mauricio Zacharias, morador de Nova York há mais de duas décadas, escreveu o filme com o diretor, baseando-se em centenas de e-mails e no rico diário de Sachs para amarrar dez anos de relação com as pequenas descobertas, a intensa atração física, os sustos e as decepções.
Na tela grande, além do debate sobre compromisso, amor e desespero que a história encerra, o longa também aponta para a possibilidade de uma terceira via no ainda modesto cinema gay, que sofre as mesmas dificuldades de produção e distribuição do cinema independente americano.
"Vários agentes em Hollywood me falaram que nenhum dos seus atores estaria disponível. Sabia que seria exaustivo achar um ator que pudesse mergulhar com tanta franqueza em cenas de sexo e nudez", conta Sachs. "Até que um amigo me contou que Lindhardt era o 'ator mais livre e corajoso da Dinamarca', procurei-o e ele aceitou ser o protagonista."
O filme se ergueu por doações de centenas de pessoas, cessão gratuita de locações e vestuário, estoques de filme da Kodak e câmeras cedidas de graça. "Foi mais penoso levantar o apoio financeiro para fazer o filme do que revelar minha história pessoal, que já estava bem processada", afirma.
ARMÁRIO
Por não falar de armário nem de aceitação, o filme de Sachs se assemelha a "Minhas Mães e Meu Pai" (2010), o filme com Julianne Moore e Annette Benning, em que os filhos de um casal de lésbicas buscam o pai biológico.
"Brokeback Mountain" (2005) ganhou diversos Oscars (mas não o de melhor filme) e o Leão de Ouro em Veneza, além de sucesso garantido nas bilheterias, ao remeter ao melodrama romântico dos anos 50 do amor impossível. Em tempos em que o romance não é muito levado a sério por Hollywood, ficando relegado a comédias românticas, o filme de caubóis de Ang Lee conseguiu sair do nicho gay.
Em tempos de maior aceitação e até do endosso pelo presidente Barack Obama ao casamento gay, personagens homossexuais se espalham em seriados de TV e como coadjuvantes no cinema, mas ainda normalmente assexuados. Os armários podem estar mais vazios, mas seus antigos ocupantes ainda precisam se comportar muito mais que seus colegas hétero.
Já no filme de Sachs, o fim da relação heterossexual de Paul até início o namoro com Erik não merece mais de um minuto, com uma pequena cena na qual o cineasta pede para ser apresentado à ex do namorado em uma galeria.
Clegg voltou a falar do vício neste ano, com o lançamento de sua segunda autobiografia, "Ninety Days" (90 dias), em que narra as semanas pós-desintoxicação e o pânico das recaídas. Solteiro, diz que está limpo e voltou com sucesso à carreira de agente literário. Trabalha na William Morris Endeavor e tem entre seus agenciados Benjamin Moser e Diane Keaton.
Sachs se casou (no papel) com um artista plástico equatoriano, responsável pelas imagens que aparecem nos créditos iniciais de "Keep the Lights on". Os dois têm dois filhos.

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