domingo, 16 de setembro de 2012

Cony, 86: "No Brasil, já não há castração. Mas há impotência"

ALVARO COSTA E SILVA
MARCO AURÉLIO CANÔNICO

JOÃO PAULO CUENCA
DO RIO
Carlos Heitor Cony, 86, surge na sala do seu apartamento na lagoa andando com dificuldade. Se a distância fosse maior, usaria uma bengala; viagens, só mesmo com cadeira de rodas. Com galhardia, Cony enfrenta um câncer linfático crônico, diagnosticado em 2001. As sessões de quimioterapia enfraqueceram-lhe as pernas.A cabeça continua tinindo.Durante duas tardes de conversas, totalizando seis horas, o escritor e colunista da Folha discute futebol e literatura, lembra amigos como Paulo Francis e Adolpho Bloch e conta como foram suas prisões durante o regime militar (1964-85) --seis no total.
Victor Moriyama/Folhapress
Reprodução da obra "Auto-Retrato de Cony", de Paulo Monteiro, feita sobre foto de André Marenco
Reprodução da obra "Auto-Retrato de Cony", de Paulo Monteiro, feita sobre foto de André Marenco
Ele até se emociona ao falar de trabalhos seus que voltam às livrarias em duas novas edições --dentro de uma lista de títulos que ultrapassa os 80, entre romances, contos, crônicas, ensaios, reportagens, infantojuvenis, adaptações.
"JK e a Ditadura" [Objetiva, 240 págs., R$ 40], que reúne dois livros anteriores sob novo título, esmiúça o episódio sobre a morte do ex-presidente num desastre automobilístico, "ainda cercado de mistério", segundo o autor.
"Chaplin e outros Ensaios", previsto para outubro pela Topbooks, recupera textos de fôlego, alguns dos quais publicados no "Jornal do Brasil" no fim dos anos 1950, como uma análise do romance carioca --vertente da qual ele próprio fez parte, porém não mais.
"Depois de publicar 'Pilatos', em 1974, não tinha mais nada a fazer. Acabei fazendo, por circunstâncias do mercado. Hoje não volto mais a escrever ficção." Mas, com Cony, tudo é possível. Há mais de 50 anos, está às voltas com um romance incompleto: "Missa para o Papa Marcello". Quem sabe?
*
Folha - Você viu o Maracanã ser erguido e esteve na final de 1950 contra o Uruguai. Com essa bagagem, acredita que o Brasil ganha a Copa de 2014?
Carlos Heitor Cony - Difícil. Como se diz, o futebol hoje é globalizado, e já não somos o que éramos antes. A Espanha, pouco tempo atrás, era uma seleção inviável. Em 1950 batemos nela de 6 a 1, ao som das "Touradas em Madri", do Braguinha. Hoje a Espanha pode ser considerada favorita.
O Brasil, mesmo em casa, não?
Falta ao Brasil um "führer". Não gosto dessa palavra, mas ela é a melhor para definir o que não temos. Não um técnico simplesmente, mas um "führer". No Brasil, não há um técnico nesse estilo.
O Felipão?
Precisamos mais, na base do nazismo mesmo. Um camarada com pulso forte em cima dos jogadores. Não vejo ninguém assim. Mano Menezes? Luxemburgo? Muricy? A Copa do Mundo é um torneio medieval. E as seleções lá de fora, hoje, têm um nível de combate superior ao nosso.
Você é a favor do novo Maracanã?
Os estádios modernos não são mais em forma de prato, como o Maracanã ou o Morumbi. Essa grande reforma era necessária, para deixá-lo em forma de xícara, que favorece uma visão melhor. Além disso, os equipamentos estavam ultrapassados, sem condições para receber o Mundial, com sua complicada estrutura de comunicações. Acho que o problema maior continua sendo de acesso, de trânsito, de chegar ao estádio.
Você esteve no primeiro jogo da história do Maracanã?
Um amistoso entre as seleções de novos do Rio e São Paulo, com vitória dos visitantes por 3 a 1. Mas o primeiro gol foi marcado pelo Didi, o maior de todos os jogadores que vi na minha vida. E olha que peguei Pelé, Puskas, Maradona, Zico. Vi o Didi dar a primeira folha seca no Maracanã. Não foi, ao contrário do que se afirma nos anais do futebol, naquele jogo das Eliminatórias da Copa do Mundo de 1958, contra o Peru. Mas antes, numa partida contra um time suíço, Grasshoppe, de camisa verde, conhecido como os Gafanhotos. Contra o Peru, ele deu o famoso passe de 40 metros, além de ter marcado mais um gol de folha seca.
Você acompanhou a polêmica da construção do Maracanã?
O Ary Barroso era vereador. Também o Carlos Lacerda, que queria a construção do estádio em Jacarepaguá, mais ou menos onde hoje fica o Riocentro. Foi uma briga terrível. Mas o Partido Comunista, que nesta época havia eleito 18 vereadores, entre eles Agildo Barata e Aparício Torelly, o Barão de Itararé, fechou com a proposta do Ary: construir no terreno onde funcionava o Derby Club. O "Jornal dos Sports", com o Mário Filho à frente, também fez campanha.
Pode-se dizer que o Mário Filho inventou a imprensa esportiva no Brasil?
Praticamente. Antes não se dava espaço ao futebol nem se entrevistava os craques. Ele já havia começado a mudar a situação no jornal do pai, "Crítica", e depois a consolidou em "O Globo". Era um homem de ideias, basta lembrar os Jogos da Primavera, que criou no "Jornal dos Sports, um desfile de mulheres bonitas que durava um mês.
Você conheceu o Mário Filho antes de conhecer o Nelson Rodrigues?
Antes eu só era amigo do Mário. E o Nelson, com ciúmes, passou a ter uma pinimba comigo. Ele mesmo depois reconheceu isso. Houve a vez em que emprestei, quando o Marcito [Márcio Moreira Alves] foi candidato a deputado em 1966, meu carro, um Simca Chambord caindo aos pedaços, para a campanha. Um dia o automóvel foi apreendido pelo Dops, com material de propaganda, considerado subversivo. A notícia saiu nos jornais, e o Mário me telefonou preocupado. Neste dia, ele passou mal e à noite morreu. Fui ao enterro e lá o Nelson me encontrou, chorando, abraçado com dona Lúcia, a cunhada dele. Tudo mudou a partir daí. Ele disse que havia perdido um irmão, mas ganhara outro.
Tornaram-se amigos?
No seleto grupo que circundava o Nelson, composto pelo José Lino Grünewald, Hans Henningsen, o Marinheiro Sueco, Pedro do Coutto, Salim Simão, imperava a certeza de que o personagem Palhares, o canalha, aquele que não respeita nem as cunhadas, sou eu.
Certa vez mandei ao Nelson um postal de Paris e, de gozação, escrevi que a Vênus de Milo estava com erisipela. Ele fez três artigos em cima da brincadeira, como se eu tivesse falado a sério. Nos encontrávamos bastante num botequim da rua Tenente Possolo, perto do "Jornal dos Sports". O Nelson pedia uma fatia de queijo do reino, mas havia de ser uma fatia diáfana. Se ele não via através do queijo o outro lado, não comia.
O Nelson Rodrigues gostava de fazer, dos amigos, personagens.
Para ilustrar isso, basta o caso do [jornalista e escritor mineiro] Otto Lara Resende. Se o Otto não permanecer pela própria obra, certamente ficará para a posteridade pelas inúmeras vezes em que foi citado pelo Nelson, inclusive em título de peça.
Você vê ligação entre a sua obra e a dele?
O Paulo Francis via. Publicou um artigo em que notava essa relação, embora fazendo justiça ao Nelson. Escreveu que eu não tinha os lampejos dele. Mas, segundo o Paulo, ambos percebiam as peculiaridades do nosso subdesenvolvimento de costumes e maneiras.
Mas, mais que o Nelson Rodrigues, o Mário Filho influenciou o seu estilo. Ou não?
Depois dele, nunca mais usei o ponto e vírgula. Quando saí do seminário, meus modelos eram o padre Antônio Vieira e Humberto de Campos. Com a leitura do Mário, ganhei naturalidade. Ele fazia coisas impressionantes.
Há um exemplo famoso na literatura universal: o episódio da feira em "Madame Bovary", de Gustave Flaubert, no qual os amantes se encontram num dia de eleição. A descrição tanto da trepada quanto do comício são simultâneas, os dois tempos seguem em colagem durante a narrativa. Pois o Mário Filho fazia a mesma coisa, e não acredito que ele conhecesse o Flaubert. Mas usava o recurso pondo em cena as torcidas do Flamengo e do Vasco, trocando provocações no café Chave de Ouro.
Você assinou a orelha do romance "O Rosto", que se passa numa redação de jornal...
Foi a única besteira que ele fez. É um livro fraco, não está à altura do Mário jornalista. "O Negro no Futebol Brasileiro" é incomparável.
Na época em que morreu o Mário Filho, você já era um colunista político bastante conhecido...
Veja bem: até 1964, eu não escrevia sobre política. Fazia alguns editoriais no "Correio da Manhã", abordando questões ligadas aos serviços da cidade, racionamento de luz e água. Mesmo hoje não dou muita bola para política. Se você me perguntar o nome de algum ministro, só sei o de dois ou três. Volta e meia, comento o assunto do momento. Aproveito o mensalão, por exemplo, para citar [Jonathan] Swift.
Qual foi sua reação contra o movimento de 1964?
Paulo Francis disse que entrei na arena com a fúria de um miúra. Mas, verdade seja dita, a primeira crônica que fiz, no dia 2 de abril de 1964, não era política. Foi um fato que presenciei na véspera, ao lado de Carlos Drummond de Andrade, que era meu colega no "Correio da Manhã".
Também éramos vizinhos no Posto 6, perto do Forte de Copacabana que, dizia-se, era o último foco de lealdade ao presidente Jango Goulart.
Eu havia sido operado aquela semana, de apendicite, estava de resguardo. A área de serviço do meu apartamento dava para a do Drummond, que me convidou a descer. Estava chovendo, e ele disse que levaria um guarda-chuva. Vimos o general César Montana dar um tapa na cara do sentinela e, com o gesto, destruir a resistência.
Logo depois um oficial fardado da Marinha deu um tiro de revólver para o alto na rua Rainha Elizabeth. Um pau-de-arara, de short, sem camisa, costas molhadas da chuva, provavelmente operário de uma obra ali perto, gritou: 'Viva Brizola!'. Não só o oficial, mas também outras pessoas, o derrubaram e o chutaram sem piedade.
Voltamos eu e Drummond em silêncio, cada um com seus pensamentos. Escrevi a crônica para o "Correio" sem nenhum comentário político, apenas narrando o que vi.
Você fazia ideia de como a imprensa iria se posicionar diante do golpe?
Com exceção do meu texto, que se chamou "Da Salvação da Pátria", quase todos os jornais, o "Jornal do Brasil", "O Globo" nem se fala, "Última Hora timidamente, saíram no dia seguinte com elogios à chamada revolução. Ao chegar na redação, ouvi a Niomar Muniz, dona do "Correio da Manhã", me perguntar de passagem: 'Você sabe o que fez?' O pessoal que trabalhava comigo no Petit Trianon, a sala dos editorialistas, estava meio arredio. Mas recebi um telefonema do Drummond, que só disse isso: 'Um abraço'.
Você não recuou?
Não me intimidei. Ao contrário, passei a chamar quem assumira o poder de gorila, sem mais palavras. Um dos textos mais agressivos, e talvez também um dos mais ingênuos, levou o título de "Cipós para todos", ao fim do qual escrevi que qualquer violência que praticassem contra mim teria um único responsável: o general Costa e Silva, do Ministério da Guerra.
Quase todos os meus amigos estavam presos ou abrigados em embaixadas. Outros mudaram de lado, como o Hélio Fernandes, que naquele momento passou a ser o dedo-duro principal. De maneira geral, a maioria ficou a favor do golpe. O próprio Lula desfilou numa daquelas marchas da família, em São Paulo. Não há foto para provar, mas ele desfilou.
Suas filhas sofreram uma tentativa de sequestro?
Dois camaradas se apresentaram no colégio delas, o Externato Atlântico, em Copacabana, dizendo que eram meus amigos e iriam tomar conta das meninas. Uma professora desconfiou, pediu documentos. Eles então colocaram as duas dentro de um carro, cujo número da placa, por sorte, a professora conseguiu anotar.
Um deles, antes de soltar as duas algumas quadras adiante, chegou a dizer para a minha filha mais velha, de apenas 12 anos: 'Vamos tirar hoje o seu cabaço'. Eram dois oficiais da Auditoria da Marinha, em trajes civis, evidentemente.
Você acabou sendo processado?
Antes chegaram a anunciar a minha morte. Um sujeito entrou correndo no "Correio da Manhã" dizendo que eu havia sido assassinado. O que aconteceu é que, em agosto de 1964, fui processado pelo Costa e Silva. Ele mesmo explicou que tomou a medida porque não conseguia mais conter a pressão daqueles que queriam me matar.
Como ainda havia algumas ilhas de legalidade, tive direito de contratar um advogado, Nelson Hungria, que pediu um "habeas corpus" no Supremo Tribunal Federal, descaracterizando a Lei de Segurança Nacional e fazendo o processo correr na Lei de Imprensa, a qual também previa o mesmo crime de que eu era acusado, ou seja, criar animosidade entre civis e militares.
Se fosse condenado, pegaria uma cana de 30 anos. O processo então passou para a esfera da 12ª Vara Criminal. Fui intimado a comparecer ao Ministério da Guerra no mesmo dia em que o Costa e Silva prestou depoimento. Foi um encontro cordial, diga-se. Depuseram a meu favor Austregésilo de Ataíde, Alceu Amoroso Lima e Carlos Drummond de Andrade. Acabei condenado à pena de três meses de prisão, em 1965, mas então já estava preso por outro motivo.
Qual?
Ter participado de uma manifestação diante do Hotel Glória, quando ali se reunia uma Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Faziam parte do nosso grupo, que foi chamado de "Os Oito do Glória", Antonio Callado, Márcio Moreira Alves, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Mario Carneiro, Flávio Rangel e o embaixador Jayme Azevedo Rodrigues.
Havia um nono integrante, o poeta Thiago de Mello, que não foi preso na ocasião mas apresentou-se às autoridades depois. O Partido Comunista prometera levar 5.000 operários, mas só apareceram cinco gatos-pingados. Não houve violência, apenas um soldado me apalpou e, como eu tinha um cachimbo no bolso, gritou: "Esse camarada está armado!'
Quando estávamos saindo de lá, presos na viatura, o Flávio disse: 'Olha o Paulo Francis!' Ele estava na calçada, olhando. Quando chegamos ao Batalhão da Guarda, em São Cristóvão, eu mesmo vi: o Paulo estava atrás de uma árvore. Na hora, me lembrei de São Pedro, que negou Cristo três vezes.
Houve outras prisões?
Ao todo, foram seis. Fui preso com a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, junto com o [jornalista] Joel Silveira. Fiquei numa espécie de Hilton, a cadeia do Batalhão da Guarda. Era um luxo: sala enorme, dois banheiros, comida de razoável para boa. Na noite de Natal, ganhamos uma cesta com nozes, amêndoas, avelãs, castanhas, frutas secas.
Quando saí, depois do Carnaval, o comandante me chamou e perguntou se eu tinha alguma queixa. Respondi que havia estranhado o tratamento cinco estrelas. Tratar o Joel com todo aquele tapete vermelho eu entendia, pois ele era um herói e um patrimônio da Força Expedicionária Brasileira. Destacou-se na cobertura da Segunda Guerra muito mais que o Rubem Braga, que não fez porra nenhuma, ficava só esperando as notícias. Mas tratar bem a mim? O oficial disse que a deferência havia sido uma ordem do Costa e Silva.
Quando você deixou o "Correio da Manhã'?
Antes do AI-2, em 1965, estava sem assunto e fiz um texto imaginando como seria o decreto: "Artigo primeiro: os Estados Unidos do Brasil passam a denominar-se Brasil dos Estados Unidos". Acontece que, na véspera, houve um pedido para que os jornalistas maneirassem as críticas em relação aos Estados Unidos.
Victor Moriyama/Folhapress
Retrato do escritor e colunista da Folha Carlos Heitor Cony feito pelo artista plástico Paulo Monteiro
Retrato do escritor e colunista da Folha Carlos Heitor Cony feito pelo artista plástico Paulo Monteiro
O [jornalista e crítico literário] Otto Maria Carpeaux, comentarista internacional, assim como muitos de nós, víamos o golpe como mais um desdobramento da Guerra Fria. Quem de fato mandava no Brasil na época era o embaixador Lincoln Gordon, sendo o Castello Branco uma espécie de Pôncio Pilatos, governador de colônia.
Meu artigo saiu, e o Antero, contínuo do jornal, foi logo me contando quando cheguei à redação: "Está uma briga danada entre o Callado e a dona Niomar. Por sua causa'. Fiz uma carta pedindo demissão e mandei o próprio Antero, que parecia um personagem de Lima Barreto, entregar ao Antonio Callado, redator-chefe do "Correio". Em solidariedade, ele também se demitiu. Logo arrumou emprego na Enciclopédia Barsa. Mas eu não...
O que você fez?
Fui acabar de escrever um romance, "Balé Branco", que andava pela metade. Peguei minha Olivetti Lettera 22 e fui para Ouro Preto terminar o livro. Essa máquina de escrever, depois eu dei para a [escritora] Maura Lopes Cançado, que nela escreveu "O Hospício é Deus". Assim que retornei, recebi um convite do Walter Clark para escrever uma novela na TV Rio, com John Herbert e Eva Vilma no elenco. Chamava-se "Comédia Carioca", consegui fazer 37 capítulos, conseguimos a liderança no horário. Mas pressões externas fizeram o Walter me substituir pelo [dramaturgo paulista] Oduvaldo Vianna, não o filho, o pai. O bom foi que me pagaram, em espécie, os três meses de contrato que eu ainda tinha de cumprir.
Aí você começou a adaptar clássicos para as Edições de Ouro?
Outro dia alguém contou: entre adaptações, traduções, prefácios, orelhas etc, fiz mais de 80 trabalhos para a editora. O chato é que começaram a me vender como tradutor. Na verdade só fiz uma tradução, a do "Tom Sawyer", de Mark Twain. Eu adaptava "Crime e Castigo", de Dostoiévski, e eles punham tradução de Carlos Heitor Cony. Ora, não sei nada de russo.
O autor que mais adaptei foi Julio Verne, quase a obra completa. Andei até inventando um pouquinho, tomando algumas liberdades. Ataquei também de Emilio Salgari, Alexandre Dumas, Gogol, Collodi. Mas, no meu entender, o melhor trabalho foi com "Moby Dick", de Melville. Vivi disso durante dois anos, média de suas adaptações por mês.
Adaptou autores brasileiros também?
No início o trato não era esse, mas acabei fazendo o Manuel Antônio de Almeida e o Raul Pompeia. Até de Eça [de Queirós] eu fui, com "O Primo Basílio". Mas, com "O Ateneu", tive um grande problema de consciência. É um romance de que gosto demais. Se eu tivesse escrito na vida alguma coisa parecida, dava-me por satisfeito e não fazia mais nada. Ia ficar aqui nessa poltrona fumando meu charuto. Puta livro.
Nessa época você passou quase um ano em Cuba?
Muitas das adaptações eu fiz em Havana. Sem emprego fixo e pressionado politicamente, o Antonio Callado me sugeriu sair do país, ir a Paris e lá procurar o pessoal do exílio. Fui na base da coragem, sem passagem de volta. Encontrei o Jorge Semprún, que conseguira ser expulso do Partido Comunista Espanhol e do Partido Comunista Francês.
O Semprún me indicou para participar, como jurado, do Prêmio Casa de las Américas, em 1968. Lá, ele me disse, você tem casa e comida, e fica o tempo que quiser, por conta do socialismo. Comigo estavam o guatemalteco Miguel Angel Astúrias, vencedor do Prêmio Nobel; o peruano José María Arguedas; um chileno que era êmulo do Pablo Neruda, Juvencio Valle; o cubano Edmundo Desnoes, que depois brigou com a Revolução; e o próprio Jorge Semprún.
Me hospedaram no Havana Libre, com direito a comer carne todos os dias, o que o restante da população não podia fazer. Mas preferi me entupir de lagosta e sorvete. O trabalho acabou e fui ficando, ficando, até que me enchi, porque lá o regime era pior do que no Brasil. Saí chateado, pois minha atitude sempre foi de anarquista, e não a de me aliar à esquerda ou à direita. Anarquista inofensivo, faço questão de dizer.
Como você voltou?
Fui para Praga, de lá para Paris, e então fui recambiado, com a ajuda da sucursal da revista "Manchete".
Você já veio com a proposta de trabalhar para o Adolpho Bloch?
Ainda não. Encontrei o Adolpho no Leme, fazendo sua pesquisa informal numa banca, para saber quantos exemplares de "Manchete" ou "Fatos e Fotos" haviam sido vendidos.
Ele me falou para aparecer no prédio novo da editora Bloch, na rua do Russel, porque tinha um trabalho para me oferecer. Era o projeto das memórias do Juscelino Kubitschek. Havia cerca de 3.000 páginas escritas, e ele precisava de alguém que editasse o material. Me ofereceu um salário igual ao do principal redator da "Manchete", Raimundo Magalhães Jr. Aceitei. Dali a alguns dias estive frente a frente com JK pela primeira vez.
Quando tempo durou esse contato?
Até a morte dele, em 1976. Começamos a trabalhar em 1969. Foi um convívio quase diário. Trabalhamos muito, mas também saíamos à noite para bater papo furado, ele não gostava de dormir cedo, íamos a São Conrado comer camarão. Para não dizer que ficamos amigos, fomos bons companheiros.
Como você sentia o Juscelino nessa época?
Ele estava em crise e, às vezes, caía em depressão braba. Tinha sofrido muito com o desquite da filha, Márcia. Estava sem emprego, depois de ter sido obrigado a vender uma financeira que administrava com o genro. Houve também o problema de saúde, o Adolpho bancou as despesas de um tratamento de próstata nos Estados Unidos, durante o qual ele me contou que pensou até em se matar.
Principalmente havia as brigas com a mulher, dona Sarah, que ficou sabendo que o Juscelino havia ido a Paris com a amante, Lúcia Pedroso. A situação ficou tão complicada que ele teve de dormir algumas vezes no corredor do apartamento, pois dona Sarah não o deixava mais entrar em casa. Para fugir do escândalo, passou a morar no prédio da "Manchete", onde tinha uma espécie de suíte, com piscina e tudo. Depois que JK morreu, eu herdei esse espaço.
As memórias foram publicadas sem problemas?
As Edições Bloch lançaram quatro livros, sendo três dedicados a sua autobiografia: "A experiência da humildade", "A escalada política" e "50 anos em 5", englobados sob o título geral de "Meu caminho para Brasília". Há um quarto livro, "Por que construí Brasília", que é, em parte, a condensação dos anteriores. Em vida, Juscelino assistiu ao lançamento do primeiro e do último volumes. Os demais seriam publicados depois da morte dele.
Inclusive aquele que você assinou e, acrescido de outros fatos, está relançando agora?
Chegamos a preparar esboços para um novo volume que teria o título de "Mil dias de exílio", referente aos três anos em que ele fora obrigado a viver no exterior. O título acabou mudando para "JK: Memorial do exílio". Publicado em 1982, este foi inteiramente assinado por mim, fechando o ciclo das memórias.
O livro que sai agora se chama "JK e a Ditadura". Acrescentei uma segunda parte, chamada "O Beijo da Morte", na qual esmiúço a morte de Juscelino num desastre de automóvel ainda cercado de mistério. Todas as possibilidades de acidente ou atentado são levantadas. Reconheço que os indícios são maiores do que qualquer prova cabal que responsabilize o regime militar pela eliminação do ex-presidente. Mas é bom lembrar que, num intervalo de oito meses, morreram João Goulart, Carlos Lacerda e JK.
O JK tinha esperança de voltar à vida pública?
Com a abertura política que se esboçava na época, Juscelino havia recebido todos os recados de que ele seria o melhor nome para realizar a transição democrática. Mas não deu. Ou não deixaram.
A morte de JK não seria um caso a ser investigado pela Comissão da Verdade?
Acho que não há interesse. Ao menos que apareça um fato novo e de comprovada relevância. A Comissão da Verdade, se funcionar direito, só vai pegar bagrinhos: oficiais menores, chefes de polícia, detetives.
Você está lançando mais um livro, "Chaplin e outros Ensaios". Tem material inédito?
Não. Tudo já publicado, mas alguns deles havia muito tempo estavam fora de circulação. Há textos da época do "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil", como os ensaios sobre Charles Chaplin ou o romance carioca. Neste, analiso Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Excluí Noel Rosa, que não era escritor, mais bem que poderia fazer parte dessa turma, formando um quarteto.
Victor Moriyama/Folhapress
Reprodução da obra "Auto-Retrato de Cony", de Paulo Monteiro, feita sobre foto de André Marenco
Reprodução da obra "Auto-Retrato de Cony", de Paulo Monteiro, feita sobre foto de André Marenco
Não botei outros autores que escreveram sobre o Rio, caso de Aluísio de Azevedo, em "O Cortiço", ou de Raul Pompeia, em "O Ateneu", pois eles não eram cariocas no espírito. O Marques Rebelo chegou perto, mas também não conseguiu. No restante do livro, que é bem eclético, com material publicado na "Manchete", rendi homenagens a Goethe, Guimarães Rosa, Victor Hugo, Suetônio, Tomás de Aquino, Fellini, Nero, entre outros.
Na mesma época em que você entrou para a "Manchete", a turma do "Pasquim" também lhe convidou para colaborar no jornal?
Nos três ou quatro primeiros números do "Pasquim", havia sempre a chamada de capa: 'Na próxima edição, Cony'. Não me animei. Disse ao Jaguar que não fazia sentido eu gastar meus neurônios para falar mal do [colunista social] Ibrahim Sued ou elogiar a [atriz] Leila Diniz. Apreciava muito o lado político e a liberdade de estilo deles, mas não era a minha. Exílio por exílio, preferi a "Manchete".
A revista lhe deu oportunidade para exercer sua vocação de repórter?
Não tenho vocação de jornalista. O que fiz foi viajar muito. Cobri conflitos no Oriente Médio, eleições de papas, o casamento de Lady Di, crimes hediondos e passionais, os desfiles de Carnaval, cometi milhares de crônicas e comentários. Editei revistas. E passei 23 anos sem escrever ficção.
Àquela altura, já havia publicado nove romances, era o autor que mais vendia na minha editora, a Civilização Brasileira. Sempre me considerei um escritor profissional, não gosto de amadores. Mas, de repente, não mais sentia necessidade de escrever ficção.
Você escreveu para a televisão?
O Adolpho Bloch ganhou a concorrência para a televisão por motivos políticos. Ele era, àquela altura, em 1983, mais interessante para o governo do que o "Jornal do Brasil", que, mesmo que tivesse a preferência, não tinha dinheiro nem competência.
Para botar a televisão no ar, o Adolfo, que sabia muito bem ter uma humildade servil diante dos poderosos, desde que lhe interessasse, teve ainda que pedir a bênção ao Roberto Marinho. E ele ajudou na instalação dos canais, tecnicamente, e até emprestando o Boni [então o principal executivo da TV Globo]. Mas com uma condição: que a futura TV Manchete atuasse apenas nas áreas de jornalismo e entretenimento, sem jamais produzir novelas. O Adolpho, a princípio, topou.
Por que depois ele rompeu o acordo?
Em briga com o governador Brizola, a TV Globo não quis fazer a transmissão do primeiro desfile das escolas de samba no Sambódromo. A Manchete entrou na jogada e bateu recordes de audiência, em 1984, ano em que a Mangueira homenageou Braguinha e levou o Carnaval.
Aquele sucesso todo fez crescer o olho do Adolpho, que resolveu competir à vera com a Globo, fazendo novelas. Não cumpriu a palavra. Aliás, palavra era a única coisa que o Adolpho Bloch não tinha, seu vocabulário se resumia a 500 palavras divididas por dez idiomas.
Ele chamou você para cuidar da dramaturgia?
Para disfarçar, e não ter problemas com o Roberto Marinho, sugeri que ele fizesse minisséries, e não novelas com grande quantidade de capítulos. E para ter um maior diferencial ainda --foi a primeira e última vez que usei essa palavra, diferencial-- sugeri que as minisséries fossem de fundo histórico.
Fizemos "Marquesa dos Santos", depois "Dona Beja", ambas com a Maitê Proença, e aquela de que gosto mais, cuja ideia foi do próprio Adolfo: "Kananga do Japão", produzida em 1990. No mesmo ano, estreou o fenômeno "Pantanal", que bateu todos os recordes, escrita a partir de uma sinopse do Benedito Ruy Barbosa recusada pela própria Globo.
Originalmente a novela era para exibida no horário das 18h. Por isso, pedimos ao Benedito que acrescentasse algumas situações mais quentes, para que pudesse ir ao ar mais tarde, com o padrão de sacanagem da TV Manchete.
A publicação do romance "Pilatos", em 1974, é um divisor de águas na sua trajetória?
Considero este o meu livro definitivo. Depois dele, não tinha mais nada a fazer. Acabei fazendo, por circunstâncias do mercado. Mas hoje, definitivamente, não volto mais a escrever ficção.
Você disse que o personagem de "Pilatos", que caminha pelas ruas carregando sua própria amputação, representava o país castrado de então. A comparação continua a valer para o Brasil de hoje?
O homem que carregava o pênis dentro de um vidro de cristal da confeitaria Colombo, como se fosse um pêssego, era a visão daquele Brasil. Hoje, já não há castração. Mas há impotência.
Por quê?
Volto aos fatos que todos conhecem: o Brasil tem a sexta ou sétima economia do mundo, mas continua com a maior desigualdade social. A elite possui um padrão de vida até superior ao do chamado Primeiro Mundo, as classes médias ascenderam, não há dúvida, mas ainda a padrões subdesenvolvidos, e a grande maioria da população vive na miserabilidade.
Você vê o Brasil com pessimismo?
Sou pessimista em relação à humanidade, não só ao Brasil. E não faço distinções de época. Há quem prefira o século 13, com suas catedrais góticas e Dante Alighieri. Ou o século seguinte, com a Renascença italiana. Eu jamais sou otimista. Otimismo é má informação.
Antes de se tornar escritor, você foi pianista?
Não sei se posso me considerar pianista. Mas o primeiro salário que ganhei, aos 21 anos, foi tocando piano num inferninho nas imediações da avenida Prado Jr., em Copacabana. Havia aprendido a tocar harmônio e órgão no seminário, exercitando o repertório eclesiástico. No inferninho, tocava boleros.
Foi mais ou menos nessa época que você escreveu o primeiro romance?
Na infância, eu tinha um problema de língua presa que me levava a dizer 'fodão' em vez de 'fogão'. Ainda não existia o bullying, mas o pessoal pegava muito no meu pé. Até entrar no seminário, frequentei três colégios, dos quais fui convidado a me retirar.
Este deve ter sido o único trauma da minha vida, o problema na fala e no freio da língua que me acompanhou até os 16 anos, finalmente curado, na base do alicate, pelo médico Pedro Ernesto [Batista], o mesmo que é considerado até hoje como o melhor prefeito que o Rio já teve. Eu descontava a rejeição escrevendo, enchia páginas do caderno Sabiá com a palavra 'fogão", de cima a baixo. Acho que fiz o primeiro poema concreto da história aos 12 anos.
Como foi a recepção de seu romance de estreia, "O Ventre", em 1958?
Dois anos antes, eu soube de um concurso para autores estreantes e inéditos, o Prêmio Manuel Antônio de Almeida, e vi ali uma oportunidade, pois já tinha "O Ventre" na gaveta. Me inscrevi, com o pseudônimo de Isaías Caminha. O livro foi considerado o melhor, mas não levei o prêmio nem a grana.
A comissão julgadora, da qual faziam parte Austregésilo de Athayde e Manuel Bandeira, considerou a obra violenta demais para vencer um concurso oficial promovido pela Prefeitura e pela Academia Brasileira de Letras. Aquilo me deu raiva e resolvi concorrer no ano seguinte. Faltavam nove dias para o prazo final das inscrições, e o "A Verdade de Cada Dia" levou exatamente esse tempo para ser concluído. Dessa vez, ganhei.
Como se escreve um livro em nove dias?
No meu caso, ou sai rápido ou não sai. "A Verdade de Cada Dia" fiz sem saber, a cada linha, como iria continuar. Tenho um livro anunciado desde o meu terceiro romance, o qual nunca consegui escrever: "Missa para o Papa Marcelo". Fui o único que preparei, os outros saíram de supetão. Cheguei a fazer alguns trechos, mas o livro até hoje não passou disso.
Tenho ainda os originais inconclusos comigo. Algumas anotações nem entendo mais: 'Fazer Mateus e Lucas personagens, e não tipos; cuidar do estilo, mantendo unidade da primeira parte', coisas assim. Aliás, o Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, quando soube desse projeto, insistiu comigo para que o retomasse. A ponto de dizer: 'Para tudo. Eu te pago o que você ganha na Folha só para terminar o romance'.
Então o livro que você preparou foi justamente aquele que não saiu? Qual a história?
Estou às voltas com ele desde o fim dos anos 50. Este seria um livro estudado. É a história de um padre epilético que não conseguia acreditar em Deus, uma espécie de continuação, só que pensada antes, de "Informação ao Crucificado", que é o diário de um seminarista. Chegou a ter outro título, "Paixão Segundo Mateus". A Clarice Lispector esteve em minha casa, viu as anotações, elogiou o título. Aí perguntou se ele era meu. Respondi que era o de uma composição do Bach. Um pouco depois ela lançou a "Paixão Segundo G.H.".
Você é um escritor metódico?
Não. Gosto de certa rotina, da precisão de escrever. Aí sento e escrevo. E escrevo rápido. Meu romance mais ou menos bolado foi "Pessach: a Travessia". A primeira parte é quase um diário da minha própria vida na época, um escritor burguês, até certo ponto alienado, que começa a receber apelos para se engajar politicamente.
Na segunda, de cara tive de consultar um mapa do Rio Grande do Sul, onde situei o grupo de luta armada, além de ter lido muito sobre o assunto. O título eu já tinha: 'pessach', em hebraico, significa passar por cima. Na travessia, ao contrário, você deixa pedaços no caminho, como se atravessasse uma parede, trazendo junto cal, tijolo, tinta. Ou seja, é o alienado da primeira parte que, por diversos equívocos, na segunda pega em armas para combater o regime.
Você usou o pseudônimo de Isaías Caminha, personagem de Lima Barreto. O Brasil, em particular o Rio, mudou muito desde que ele escreveu "As Recordações do Escrivão Isaías Caminha" e "Triste Fim de Policarpo Quaresma"?
Quanto às relações de poder na imprensa, que o Lima denuncia nas "Recordações...", não mudou praticamente nada. Quanto ao Rio, ficou ainda mais medíocre do que na época dele. Panoramicamente continua a cidade mais bonita do mundo, mas em close, é horrível. O Lima Barreto, como ninguém, sabia disso. Aliás, ele só pisou na bola uma vez, indo contra o futebol. No mais, foi impecável.
Você percebe alguma ligação do Lima Barreto com o Swift, que também é um de seus autores prediletos?
Não. Aí passamos para a esfera do Machado de Assis. Falam muito da admiração dele pelo Sterne, mas para mim Machado é puro Swift. Continuo relendo os dois. E ainda Flaubert e [Marcel] Proust. Mas não releria mais o [Émile] Zola, cuja obra hoje perdeu a importância.
Você está no tempo das releituras?
Sou um homem terminal. Sofro de um câncer linfático crônico há 11 anos. Faço quimioterapia uma vez por mês, resultando no enfraquecimento de minhas penas. Ando de bengala. Para distâncias maiores, ou viagens, uso cadeira de rodas. Faço massagem e fisioterapia todas as semanas. Há quinze dias não saio de casa. E não compareço às sessões da Academia Brasileira de Letras há mais de um ano. Ler, ou reler, é uma boa opção, não acha?
O Ruy Castro costuma dizer que você, numa conversa, dá voltas e voltas e acaba sempre voltando às Guerras Púnicas. É verdade? Pelo menos, com a gente, não se falou delas.
Ruy está desatualizado. Meu negócio agora é a Guerra do Peloponeso.

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