
A vida da cantora francesa Edith Piaf é contada no livro "Piaf - Uma Vida", escrito por Carolyn Burke. Na foto, reproduzida no livro, Edith Piaf recebe a cantora e atriz Marlene Dietrich no camarim do Versailles Nightclub, em Nova York, em noite de setembro de 1952 Divulgação
A voz imponente e os vestidos pretos tornaram inconfundíveis as performances da francesa Edith Piaf, mas a imagem frágil da chamada "Pequeno Pardal" camuflava um passado encoberto por tragédias. A biografia "Piaf - Uma Vida" (Ed. Leya), escrito por Carolyn Burke, retrata sua ascensão à fama mundial e os momentos mais trágicos e menos conhecidos de sua história. O livro chega às lojas no próximo final de semana.
Criada entre um bordel, uma caravana circense e um bairro de classe trabalhadora, Piaf foi descoberta cantando na rua, e iniciou sua carreira em um cabaré na Champs-Elysées. Da infância no bordel, as lutas contra as drogas e o álcool, os amores perdidos e os muitos casamentos, a autora conta histórias que passavam despercebidas toda vez que Piaf subia no palco.
Édith Piaf era o nome artístico de Édith Giovanna Gassion, que nasceu em Paris em 19 de dezembro de 1915 e morreu em 11 de outubro de 1963. Autora de quase cem canções, Piaf elevou sua carreira a um nível mundial com clássicos como "La Vie En Rose" (1946), "Milord" (1959) e "Non, Je Ne Regrette Rien" (1960). Além de cantora, participou de peças teatrais e filmes.
Em junho de 2007 foi lançado um filme biográfico sobre ela, chegando aos cinemas brasileiros em agosto do mesmo ano com o título "Piaf - Um Hino Ao Amor" (originalmente "La Môme", em inglês "La Vie En Rose"), direção de Olivier Dahan.
Leia trecho do livro "Piaf - Uma Vida", por Carolyn Burke
Da Redação UOL
Reprodução Capa do livro "Piaf - Uma Vida", de Carolyn Burke |
Capítulo um
1915-1925
A vida de Edith Piaf começa como uma versão moderna de "Les Miserables" (Os Miseráveis). Menina de um bairro pobre parisiense, ela cresceu entre as almas oprimidas que um dia habitariam suas letras e, por meio da sua ressonância mítica, moldariam o cenário da cultura francesa do século XX. A história de Piaf pode ser vista como a matéria-prima típica de qualquer lenda da classe trabalhadora; e suas alegrias e tristezas, como fontes para as canções. Da origem miserável, ela guardou um jeito atrevido, comum a quem conhece o dia a dia nas ruas, e o espírito alegre, enquanto se reinventava como a cantora que ultrapassaria barreiras sociais, nacionais e linguísticas para dar voz às emoções de gente comum.
Apesar das histórias fabulosas em torno de Piaf, sua infância não foi nenhum conto de fadas. Os poucos fatos conhecidos a respeito do seu começo desafortunado misturam-se a lendas que ela mesma e outras pessoas passaram a cultivar quando se tornou famosa; neste caso, muitas vezes é impossível separar fato de ficção – pretensão pouco pertinente, tendo em vista que sua arte e lenda alimentaram uma à outra, devolvendo-a às ruas onde começou. "Au bal de la chance" (A roda da fortuna), 1958, e Ma vie (Minha vida), 1964 – versões de sua vida ditada por outros – precisam ser complementadas por entrevistas com Piaf e seus amigos para que nos ajudem a compreender o contexto de cada lenda gerada ao seu redor.
Edith Piaf nasceu no segundo ano da Primeira Guerra Mundial, em Belleville, um povoado desafiadoramente independente, na parte alta a leste de Paris, que se mantinha, mesmo muito tempo depois de ter sido anexado à cidade em 1860, como símbolo da cultura revolucionária. Diferente de Montmartre, outro bairro miserável no topo da cidade, Belleville não possuía uma comunidade artística. Sem um Picasso para celebrar aquela área nem visitantes burgueses à procura da vida boêmia, o bairro conservava seu jeito vulgar. Maurice Chevalier, que cresceu próximo dali, em Menilmontant, chamava Belleville "capital da periferia de Paris". Apesar da população formada basicamente pela classe trabalhadora, tinha de tudo um pouco: "um sujeito bom e honesto pode viver ao lado do cafetão mais sórdido, e esposas respeitáveis ficam na fila da padaria com as prostitutas".
Uma mancha similar de promiscuidade dá cores à infância de Piaf. "Minha mãe quase me pariu na rua", ela contou a um jornalista, que depois removeu a palavra "quase" para criar a conhecida lenda sobre como Piaf veio ao mundo protegida apenas por uma capa de lã colocada sobre o asfalto por um policial com presença de espírito. Tempos depois, quando perguntada se, de fato, havia nascido na rua, Piaf nem confirmou nem negou a história, deixando que as pessoas acreditassem no que preferissem. "Ela não sabia muito sobre a própria infância", disse uma vez o compositor Henri Contet, e gostava de alimentar as versões dadas pela imprensa, que serviam como um reflexo seu – como se, estudando as versões, ela pudesse juntar peças suficientes para completar o quebra-cabeça dos seus primeiros passos.
Um documento registrado na Prefeitura do vigésimo distrito, no centro administrativo de Belleville, fornece uma versão pouco mais confiável do nascimento da menininha nas proximidades do Hospital Tenon. "No dia 19 de dezembro de 1915", começa o texto, "o parto de Edith Giovanna, filha de Louis Gassion, 'acrobata', 34, e de sua esposa, Annetta Giovanna Maillard, 'cantora', 20, ocorreu às cinco horas da manhã na Rue de la Chine" (endereço do hospital). O documento, assinado por uma enfermeira que assistiu o parto e por dois funcionários do hospital – "na ausência do pai" –, aponta o número 72 da Rue de Belleville como endereço do casal, um prédio modesto em cuja escadaria a mãe pode ou não ter entrado em trabalho de parto. Aqui, os simples fatos – nome, idade e profissão dos pais, seu endereço, hora e local de nascimento – formam o caixilho sobre o qual a história de Edith Piaf pode ser tecida ponto a ponto.
Comecemos pelo pai ausente, aqui identificado como um "acrobata". Louis Gassion, homem bonito, com um belo corpo, tinha pouco menos de 1,60 m. Era um soldado em campo, entrincheirado ao leste da França quando Edith nasceu, e permaneceria fora por quase toda sua infância. Depois da guerra, a ausência contínua do pai explicava-se pela vida de artista itinerante que levava e por seu amor ao gros rouge, vinho tinto barato. "Era o veneno que o mantinha na ativa", costumava dizer Piaf sobre seu pai, de quem herdara a baixa estatura (adulta, ela media cerca de 1,49 m).
Louis Gassion treinou seu ofício desde a infância, tendo aprimorado os truques nos anos 1890 – quando artistas como Valentin le Désossé ("o desossado", contorcionista do Moulin Rouge imortalizado em obra de Toulouse-Lautrec) entretinham as massas. O pai de Piaf apresentava-se como contorcionista, mas jamais atingiu o nível de celebridade de Le Désossé. Antes da guerra, fez uma turnê pela Europa com o circo da família Gassion, que tinha sua base na Normandia, sob a direção do pai, Victor Gassion, um equitador que também recrutou quatro das irmãs mais jovens de Louis como trapezistas. Sua mãe, Louise-Léontine Descamps Gassion, destacava-se no comando dessa grande tribo. Se foram feitas fotografias dos pais de Louis e de seus catorze filhos, nenhuma restou. Talvez eles não fossem suficientemente bem-sucedidos para registrar sua vida como fazem as famílias burguesas.
"Piaf - Uma Vida"
- Autor: Carolyn Burke
- Editora: LeYa Brasil
- Tradutor: Cecília Giannetti
- Páginas: 392
- Preço: R$ 44,90
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