quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Em "Escalada", censura proibiu JK na inauguração de Brasília

James Cimino Do UOL, em São Paulo

É possível imaginar um documentário, um filme, uma série ou uma novela que falem sobre a construção de Brasília sem qualquer referência a seu idealizador, o presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira? Nos tempos da ditadura militar foi exatamente isso que aconteceu. Como JK era opositor da ditadura e tinha planos de voltar à presidência, os censores proibiram qualquer menção a seu nome na novela "Escalada", escrita por Lauro César Muniz e protagonizada por Tarcísio Meira, Renée de Vielmond e Susana Vieira. A novela contava a trajetória de Antonio Dias, desde os anos 1930 até o presente de então, 1975, ano de sua exibição.

O protagonista participava, entre outras empreitadas, da construção da nova capital. JK nem era um personagem. Apareceria apenas em filmes da inauguração da cidade. Mesmo assim, os censores foram irredutíveis. Trinta e oito anos após sua exibição, o autor da trama pôde ver pela primeira vez os laudos e apontamentos da censura sobre a história que escrevera inspirado na trajetória de seu pai. Em entrevista exclusiva, Muniz contou ao UOL as histórias por trás de cada documento neste terceiro capítulo da série sobre a censura às novelas. Leia a entrevista: UOL – Por que a censura implicou tanto com "Escalada"? Lauro César Muniz – A coisa que mais me deixou perplexo em "Escalada" foi que eles me proibiram de citar o nome do Juscelino [Kubitschek] direta ou indiretamente. Então eu não podia dizer nem Juscelino, nem JK, nem Nonô (que era o apelido de infância dele). Mas um dia eu tive o privilégio de ir jantar com ele. E assistimos a um capítulo de "Escalada" juntos. Jantamos e ficamos conversando até tarde da noite. Aí passei a trocar cartas com ele. Quando ele foi editar um dos seus livros, "A Escalada Política", ele pediu minha autorização para usar a palavra "escalada", veja só...
Depois me mandou seus livros autografados. Como funcionava o processo de censura? Depois de eles analisarem as sinopses a gente ia a Brasília para negociar as coisas que eram para ser cortadas. Algumas nós conseguíamos, outras a gente perdia... Eles eram maleáveis? Maleáveis em que sentido? De aceitarem as contestações? Olha, eles nos tratavam muito bem... Ouviam, mas nem sempre acatavam, claro... Ficávamos em volta de uma mesa, na cabeceira o censor, em volta eu, o diretor e o representante da censura dentro da Globo. Íamos para lá a discutíamos na medida do possível os cortes. Em "Escalada", a princípio, não teve muito problema. Mas conforme os capítulos foram sendo gravados, começou a complicar bastante. Por exemplo? Fora o Juscelino, vários cortes de relações femininas que eles consideravam extraconjugais. Por exemplo, o personagem do Tarcísio Meira [Antonio Dias, o protagonista da história] se desquitava da personagem da Susana Vieira [Cândida] e ela se envolvia com o personagem do Leonardo Villar [Alberto]. Isso era um problema, embora eles fossem desquitados. Não havia divórcio ainda. O senador Nelson Carneiro chegou a me dizer que essa novela até o ajudou bastante durante o processo de aprovação da lei do divórcio no ano de 1977. Disse que esclareceu as dificuldades da mulher com as restrições do desquite. Você teve de fazer alguma mudança drástica na sinopse original da novela? A única sinopse que tive que alterar foi de "O Casarão". Tirei dois personagens. Um rapaz judeu que se apaixonava por uma mulher não judia. Eles me pediram para tirar isso, para não mexer com as restrições dos judeus com relação ao casamento com não-judeus. Eu atendi porque me pareceu que não precisava ir tão fundo assim. Mas não houve pressão de tirar do ar. Foi antes de a novela começar, inclusive. Em "Escalada" eu tive que modificar um personagem que era um vigarista que se vestia de batina e tomava o lugar do padre da cidade, que já estava muito velho. Quem fazia era a Lutero Luiz e eu tive que trocar por professor, para não mexer com a Igreja Católica. Hoje isso passaria tranquilamente. Cenas de sexo não se faziam de maneira nenhuma. Tive problema com um menino, o filho do Antonio Dias, que fumava escondido. Era uma brincadeira, coisa de criança, muito comum, mas não podia dar ideia. O que eu fiz, e que passou, é que ele pega a o cigarro apagado e coloca na boca. Na época podia fumar nas novelas? O que não podia era criança fumar. Mas os adultos podiam muito. Acho que até que havia merchandising de cigarro...

Tivemos acesso um laudo em que eles pedem o corte da cena em que a personagem Marina [Renée de Vielmond] pede para passar a noite toda com Antonio Dias... Isso era muito comum. A gente nem podia sugerir que ele, que não era casado com a Marina, embora fossem apaixonados, passaria a noite junto com ela. Você viu o laudo sobre o uso da palavra "cocô" na sua novela? Que coisa absurda! "Uma coisa que dá nos coqueiros, só que com acento fora do lugar!" A palavra cocô era de extremo mau gosto, olha só! Outro dia o [José] Wilker falou em "Gabriela" que ia cagar com a maior tranquilidade (gargalhadas). Houve algum momento em que vocês acharam que a censura poderia voltar? Durante o governo Fernando Henrique eu e alguns artistas fomos a Brasília conversar com ele. Havia rumores de que ele estaria sofrendo pressão para que voltasse. Em determinado momento do almoço ficamos a sós, na hora da sobremesa. Eu falei que estava muito preocupado. Ele deu uma piscada e disse: "Deixe isso comigo..." Foi um off (risos)... Nos documentos, há um pedido de corte de cenas "por contrariar os interesses nacionais e por suas agressivas citações, ainda que referentes a governos anteriores". O que significa isso? Qualquer governo ditatorial que refletisse o que estava acontecendo no país, que fizesse alusão ao presente, era cortado. E a novela tinha o Getúlio, né? No início da novela. A novela começava no final da década de 1930. Ela começa no Estado Novo. A gente fazia intencionalmente, não vou negar. A pressão para não fazer simplesmente empurrava a gente a fazer. Chamávamos isso de guerrilha. E fazíamos! O Dias Gomes, eu, o Bráulio Pedroso. Era uma coisa feita com consciência. Por que não aproveitar o governo ditatorial do Getúlio Vargas, o Estado Novo e mencionar coisas semelhantes com a ditadura militar que estava no auge em 1975, com o governo Médici? COMO PESQUISAR SOBRE CENSURA? Basta marcar horário pelo fone 0/xx/61-3344-8242; o Arquivo Nacional fica no Setor de Indústrias Gráficas, Quadra 6, Lote 800, em Brasília Outro laudo menciona que a sua novela fazia um "combate à política cafeeira do país". Como? Isso foi outra coisa incrível que aconteceu. Houve erros na política cafeeira do próprio Juscelino. Ele foi obrigado a baixar um decreto relativo ao confisco cambial do café. Quer dizer, todo café exportado tinha que reter um valor de imposto para o governo. E o personagem do Antonio Dias falava disso, afinal ele era cafeicultor. Quando a crítica foi relativa ao governo de então, cortaram. Quando foi sobre o governo do JK, a cena passou. Aliás, no capítulo em que assisti com o Juscelino, falava-se disso. Tive vontade de entrar embaixo da mesa de vergonha. Ele disse que era verdade e que sofreu muito com isso, pois tinha sido pressionado a fazer. E deu razão à minha crítica, o que foi bonito. Há um pedido de corte de uma cena que contém nome de "país relacionado com o Brasil cooperando com uniões conjugais de desquitados no país". Que país era esse? Naquela ocasião que tinha desquite, muita gente ia se casar fora do Brasil. No Uruguai, por exemplo, em que existia divórcio. E essa menção era feita na novela, que era muito mais saudável se casar fora do Brasil. A Marina, por exemplo, casava-se nos Estados Unidos com Cecil Thiré e voltava depois de muitos anos. E como ela voltava e se apaixonava de novo pelo Antonio Dias, ela dizia que poderia perfeitamente se divorciar nos Estados Unidos. E ela entra com o processo de divórcio lá. E se comentava que a situação da Marina era muito mais confortável do que a da mulher desquitada, que continuava tendo obrigações com o marido. Chamava muito a atenção e a censura caiu em cima disso, embora alguma coisa a esse respeito tenha passado. "Cortar cena em que o protagonista faz gesto às escâncaras. Ou seja, dá banana!" Qual o motivo desse corte? Você veja, dar banana era obsceno. A palavra "chato", por exemplo. Era evitada. Porque fazia alusão ao bichinho que dá nos pentelhos! E a palavra "chato" surgiu nos anos 1940, se não me engano, e era relativa exatamente ao bichinho, porque era uma coisa chata pegar aquilo! Eu não sei. Era uma loucura aquilo. Era um "nonsense".

Há um documento da Globo avisando à censura que a atriz Camila Amado fora substituída pela Susana Vieira. Os censores tinham que ser avisados de tudo? Tudo tinha que avisar. Tinha uma parte burocrática terrível. Por exemplo, agora o personagem do Lutero Luiz não é mais padre. Aí tinha que reescrever a sinopse e mandar tudo de novo com as mudanças que iam decorrer disso. E tinha uma pessoa encarregada de digitar tudo isso e mandar para eles. Um saco! E por que ela foi substituída? É até meio chato de dizer isso, mas ela não tinha muita experiência de televisão. Ela era uma ótima atriz de teatro, mas para a TV era muito empostada. Aí o Daniel Filho me chamou e perguntou o que eu achava. A gente concluiu que o tom dela era muito teatral. Aí a Susana regravou tudo. Mas fiquei muito chateado, porque tenho muito apreço pela Camila. Autor Lauro César Muniz folheia livro autografado pelo presidente Juscelino Kubitschek Em outro documento, a Globo informa aos censores o início da terceira fase, que é marcada pela inauguração de Brasília. Também informa que serão usados filmes com imagens reais da época. Eles autorizaram? Foi na terceira fase que deu problema com o Juscelino. O personagem do Antonio Dias ia para Brasília construir a cidade. Ele era uma espécie de mestre de obras e ficava em barracos. Tinha o momento da inauguração. Quisemos colocar filmes com o Juscelino, mas não deixaram. Mostraram flashes da cidade já construída, mas sem o Juscelino. Aí, para driblar, o personagem do Otávio Augusto assoviava a música "Peixe Vivo" ("como pode o peixe vivo/viver fora da água fria"). Era uma música que o JK gostava de cantar na infância em Diamantina (MG). Ele assoviava, porque nem cantar podia. Isso incomodou a censura, mas o Juscelino riu muito disso. Aqui tem um documento falando do desmembramento dos capítulos 191 e 192, por quê? Os capítulos 191 e 192 foram desmembrados em seis capítulos, com flashbacks. Isso foi um pedido do Boni e eu não pude recusar. Isso porque a novela que ia estrear em seguida era "Roque Santeiro". Como a novela foi proibida, tínhamos que ganhar tempo até decidir o que eles iam fazer. Tive que fazer mais quatro capítulos além. Nessa ocasião, fomos a Brasília. A Globo inteira foi, mas não foi possível demovê-los da ideia de proibir a novela. Aí estreou um compacto de "Selva de Pedra" e só depois, a cores, estreou "Pecado Capital". Que outras novelas suas foram censuradas? Todas! Até "O Salvador da Pátria", que foi a primeira novela a ser exibida após o fim da censura. O final do Sassá Mutema [Lima Duarte] era diferente. Quase todo mundo achava que o Sassá era o Lula. O próprio Lula me perguntou isso uma vez. Só que uma parte achava que eu estava criticando negativamente o Lula, e outros achavam que eu estava enaltecendo o Lula. Só que a novela ia muito bem de audiência. Foi minha novela de maior audiência. Por isso, havia uma pressão muito forte para que eu desviasse o foco político do personagem e centrasse no foco policial. Até que um dia eu recebi um pedido da direção da Globo, com todas as letras, para evitar o político, porque havia chegado uma informação de Brasília que o ministro da Justiça estaria muito incomodado porque o ele achava que a novela era uma propaganda pró-Lula. Fui obrigado a modificar o final da minha história. O final era com o Sassá Mutema subindo a rampa do Planalto, inclusive está na abertura, em função dessa interferência de Brasília. Até hoje é um mistério pra mim essa história.


 

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