No início dos anos 70, ainda na ressaca tropicalista, Caetano Veloso e Gilberto Gil recebiam a visita de Gal Costa em Londres, onde viviam em exílio, após serem perseguidos pelos repressores da Ditadura.
O híbrido entre o rock, as raízes brasileiras e a experimentação, que ditariam os rumos dos baianos durante a década, surgiram na cidade fria e cinzenta, e um importante registro dessa fase, completamente desconhecido até então, chegou às lojas no mês passado. O álbum duplo "Gilberto Gil & Gal Costa Live in London '71" (selo Discobertas, R$ 34) reúne, na íntegra, um show raro, feito pela dupla no Student Centre da City University London, para uma plateia de expatriados e locais.
"Sempre ia a Londres naquele período e passava pelo menos dois meses com eles", relembra Gal, ao UOL, sobre a fase. "Vi o festival da Ilha de Wight, vi John Lennon e Yoko Ono cantarem, íamos a Paris, e cantávamos muito juntos. Matava a saudade que sentia deles.
Era muito comum nos reunirmos para cantar. Eles sempre tiveram a expectativa de voltar, sabiam, lá no fundo, que um dia voltariam".
Em uma dessas visitas constantes, Gal e Gil armaram um show na universidade. Alguém na mesa acabou gravando o show em boas condições, sem os cantores saberem. Embora o momento fosse de incerteza e intensa saudade do país, o registro revela momentos de criatividade, que ditariam os próximos passos na carreira.
Acompanhados de uma banda enxuta, com apenas baixo, bateria e percussão, Gil e Gal tocaram violão juntos e dividiram o setlist em duas partes. A primeira, no disco 1, é dedicada a Gal, que preparava o repertório para o show "Fa-Tal", cujo disco é citado ainda hoje como uma das obras-primas da época.
Gal se joga em interpretações em clima de desbunde – do hino hippie de "Dê um Rolê" a folia de "Chuva, Suor e Cerveja". Há espaço ainda para uma bonita versão de "Vapor Barato", acústica, mas intensa, com Gil no backing vocal, e "Acauã", com a bateria alucinada de Tutty Moreno, apoiado por Bruce Henry (baixo) e Chiquinho Azevedo (percussão).
O registro marca os últimos meses de Gil em Londres, que voltaria em definitivo ao Brasil, em janeiro seguinte. De cuca fresca e cada vez mais interessado nas raízes do rock e da música nordestina, Gil se encarrega da parte mais experimental e roqueira, mesmo sem guitarras. "Expresso 2222" e "Oriente" já davam o tom de seu próximo disco, "Expresso 2222" (1972).
Já em "Aquele Abraço", "Viramundo" e "Sgt. Peppers Lonely Heart Club Band", dos Beatles, Gil se arrisca em longos improvisos. "Vamos estão vendo esse clima de informalidade. É porque a gente está informal", comenta o cantor, aos risos, durante a apresentação.
A informalidade não dá espaço para a perfeição. O vocal, em alguns momentos, é estourado, e a microfonia se sobressai em algumas passagens. Por conta disso, o registro está mais do que vivo e chega nas próximas semanas em vinil – como se tivesse acabado de sair do forno em 1971.
"Dimensão religiosa"
Em turnê europeia, Gil não respondeu à reportagem sobre o lançamento, mas brindou no Facebook, no aniversário de Gal, no último dia 26, o resgate desse encontro. "Entre nós havia a confiança mutua, uma quase dimensão religiosa, da divindade que é a música. Era como estar rezando, em estado de oração".
A gravação foi encontrada pelo produtor Marcelo Fróes, um desbravador de tesouros perdidos da MPB. Com aval do Gil, o dono do selo Discobertas estava procurando o segundo disco gravado em Londres pelo baiano, dado como perdido, quando encontrou o registro.
"Eu não sabia que esse show estava gravado. Estava atrás do segundo disco dele feito em Londres. Ele disse que havia gravado no Chapell Studios, que já estava fechado. Fiquei sabendo que o acervo de fitas tinha sido vendido para um colecionador, entrei em contato e falei sobre Gil. Quando fui à Londres, recebi o 'Copacabana Mon Amour' [trilha sonora rara feita por Gil em 1970 para o filme de Rogério Sganzerla] e esse show. Comprei a master, e estava em perfeitas condições, digitalizei e recentemente masterizei", conta Fróes.
Sem lembrar do show, Gal conta que se emocionou ao ouvir as faixas já remixadas. "Minha conexão musical com Gil sempre foi intensa, principalmente naquela época. E ainda é forte até hoje". A redescoberta a fez repensar, inclusive, em voltar a tocar violão. "Não tenho tocado mais. Deveria, não é? Quem sabe farei isso ainda", promete.
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