quarta-feira, 30 de março de 2016

Série 40 anos: Elis e seu 'Falso Brilhante'

Cláudio Francioni 

Lembro-me de que a música "Velha Roupa Colorida" tinha um tom bem alto e exigia muito da voz dela. Gravamos e fomos escutar. Ela não ficou contente com a sua interpretação, queria refazer aquela música e disse: "vamos deixar essa pro final". Gravamos todas as músicas que comporiam o disco e, após tantas horas cantando, eu pensei: "Acho que vai ser difícil ela cantar a música "Velha Roupa Colorida". A música exigia mesmo um tremendo esforço. Então, ela me pediu: "Mazzola, vamos gravar "Velha Roupa Colorida" de uma vez só?". Acendi a luz vermelha com a palavra silêncio que ficava na porta dos estúdios de gravação e pedi também silêncio aos músicos pelo interfone.

Dei play-record na máquina e disse: "Gravando!". A cada frase que ela cantava, eu sentia que estava possuída, de olhos fechados, sem piscar, punhos cerrados. Ela cantava dentro de um pequeno ambiente separada dos músicos para que o som dos instrumentos não interferisse em seu microfone. Esse ambiente ficava bem ao lado da cabine da técnica e era fechado também com visores de vidro pelos quais podíamos nos comunicar com olhares e gestos. Ao final da gravação, ela abriu os olhos e olhou para a técnica, ainda mais estrábica. Eu pulava de alegria, todos nós emocionados nos abraçamos e ninguém ali conseguiu controlar o choro.

Pressentimos que estávamos vivendo um momento importante na MPB, uma gravação que iria fazer história. Estes parágrafos, que foram retirados do livro "Ouvindo Estrelas" (Editora Planeta, 2007), a autobiografia do super-produtor Marco Mazolla, sintetizam um pouco da magia por trás de "Falso Brilhante", álbum de Elis Regina que comemora 40 anos em 2016. "Falso Brilhante" teve sua gênese num processo de trás pra frente. O disco nasceu de uma temporada de shows que lotou durante alguns meses o Teatro Bandeirantes, em São Paulo. Do espetáculo, Elis pinçou algumas canções e partiu para a gravação. As duas faixas que abrem o disco foram garimpadas pela própria cantora e pertenciam a um compositor até então desconhecido: Belchior. "Como Nossos Pais" e a já citada "Velha Roupa Colorida" traziam duros recados para uma juventude que crescia em meio à ditadura. Vale ressaltar que foi a partir deste cartão de visitas que Mazolla foi atrás de Belchior em um muquifo onde vivia em São Paulo e peitou a gravadora onde trabalhava para contratá-lo. É difícil comparar as diferentes virtudes destas obras, como letra, interpretação, harmonia, mas não há como não se colocar nas alturas os arranjos de César Camargo Mariano.

"Como Nossos Pais" virou um hino e dispensa maiores comentários, com seus característicos ataques alternados em tempos e contratempos. "Velha Roupa..." é um rockaço frenético que se transforma em blues em certos momentos e tem um arranjo de contrabaixo tão fenomenal quanto simples. A mixagem de Mazolla é outra estrela da obra e permite a impecável percepção de todos os instrumentos com seus timbres peculiares à época. A belíssima sonoridade da bateria, crua e seca, é comum às gravações de Secos e Molhados, Tutti Frutti e outros artistas do início dos setenta. O fantástico baixo de Wilson Gomes está "na cara", como se costuma dizer quando um instrumento se sobressai na mixagem. O álbum prossegue com "Los Hermanos", um falso tango de Atahualpa Yuanqui que traz na letra um clamor pela união dos irmãos latinos contra as ditaduras que se instalavam pelo continente na época. A interpretação de Elis, apesar de primorosa, carecia de uma melhor pronúncia em alguns momentos.

A faixa que fechava o lado A era uma facada no peito: "Fascinação", a versão de Armando Louzada para o clássico francês do início do século, me remete aos meus tenros sete anos de idade, quando a canção foi tema de "O Casarão", novela que minhas mãe e avó acompanhavam diariamente, se debulhando em lágrimas enquanto a voz de Elis embalava o romance entre os personagens de Paulo Gracindo e Yara Côrtes. Que interpretação e que piano! Era o casal Elis/César em sua mais perfeita conjunção artística. A dupla João Bosco/Aldir Blanc se fez presente no disco com três canções: "Um Por Todos" (outra cutucada na ditadura), "Jardins de Infância" e "O Cavaleiro e os Moinhos", esta uma referência à obra de Cervantes. "Quero", de Thomas Roth, talvez fosse a canção mais "tolinha" do disco, mas nada que Elis colocasse a mão (ou a voz) se tornava desprezível. Um toque rural e mais uma vez um discurso sobre liberdade, mesmo que com outra conotação. A última crítica política estava em "Gracias a La Vida", não tanto pela letra da chilena Violeta Parra, mas sim pelo desejo de Elis em gritar contra o regime de Pinochet. O álbum se encerra em "Tatuagem", uma metáfora romântica genial de Chico Buarque em parceria com Ruy Guerra. É claro que o talento de Elis foi preponderante para que "Falso Brilhante" se tornasse mundialmente reconhecido, mas é injustiça deixar de creditar ao arranjador César Camargo Mariano, ao produtor Marco Mazolla e aos músicos Nenê, Nathan Marques, Wilson Gomes e Crispim Del Cistia o nível de excelência que esta obra alcançou. Um disco impecável formatado por muitas mãos, por alguns cérebros privilegiados e por uma voz inigualável.

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