segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Estreia-'Elis' dá 'aula' sobre MPB, com roteiro superficial e atuação caricata

Em uma cinebiografia, é difícil resistir à tentação do caminho mais tradicional: reunir um punhado de acontecimentos em uma ordem cronológica à lá Wikipedia, com um tantinho de licença poética para tornar mais empolgante a vida do protagonista. Às vezes funciona.

Mas em “Elis”, que estreia nesta quinta-feira (24), o modelo tirou complexidade e força de uma figura sobre a qual a dimensão psicológica sempre pesou mais que os fatos em si. Isso porque o método mais usual nem sempre é o mais fácil. Sintetizar a vida de alguém em menos de duas horas exige escolhas arriscadas. O diretor Hugo Prata, que também assina o roteiro ao lado de Luiz Bolognesi e Vera Egito, optou por contar a história da adolescência à morte da artista, passando por sua ascensão à fama, o casamento conturbado com Ronaldo Bôscoli, a redenção amorosa com César Mariano, a relação com a ditadura militar e a angústia do fim da vida. Se por um lado o roteiro oferece um bom panorama didático, principalmente da mudança musical proporcionada por Elis Regina, que derrubou o intimismo da Bossa Nova, por outro, é superficial e previsível. Os acontecimentos se atropelam, sem conexões sólidas.

O temperamento determinado e explosivo da personagem é simplório e uniforme, longe do espírito da cantora, uma mulher de extremos. Temas mais cabeludos de sua trajetória, como o uso de drogas nos últimos anos de vida e o criticado show na Olimpíada do Exército de 1972, são retratados de forma ligeira e sem profundidade, dando espaço a longas cenas de sexo e brigas com Bôscoli. Na ficção, há bem pouca inveja, competição, ganância e insegurança ao redor de Elis, quase sempre cercada só por admiração. O que se vê na tela não vai muito além do que pode ser lido ao pesquisar o nome da cantora no Google. Outra escolha do diretor é dar destaque aos homens que cruzaram o caminho da artista, alterando seu percurso – até a imagem de sua mãe é suprimida em nome da ideia. A tentativa não é de tirar o protagonismo da biografada, mas mostrar que todos eles foram subservientes a ela. A proposta é arriscada, e funciona só até certo ponto. Às vezes dá a impressão de que o caminho de Elis foi trilhado por esses personagens – quando decide cortar o cabelo, por exemplo, é por sugestão de Bôscoli –, e sua dominância em um universo até então masculino poderia ter sido mais explorada. Fator mais marcante do filme, a semelhança física entre Elis e sua intérprete, Andreia Horta, impressiona. E é notável o esforço da atriz para incorporar seus trejeitos expansivos.

Mas, se Elis era uma figura caricata, como dar naturalidade à sua interpretação? Andreia, que estudou durante três meses a personagem, não conseguiu chegar na resposta, e cai de cabeça na imitação. Sorriso aberto, olhos arregalados e braços frenéticos são usados à exaustão. Lúcio Mauro Filho faz uma versão caricaturesca de Luís Carlos Miele. Em uma cinebiografia aguardada e significativa, a intensidade e talento da mais importante cantora da história do país se perde em frases de efeito, diálogos explicativos e lições de moral. É uma homenagem cheia de boas intenções, mas que está longe de fazer jus ao que Elis representou para o Brasil.
Outra opinião 
Para o blogueiro Mauro Ferreira, do G1, a atuação antológica de Andreia Horta como a personagem-título engrandece "Elis". Ele acrescenta que contar 18 dos 36 anos da cantora em um filme de 115 minutos é tarefa ingrata assumida com competência pelo diretor Hugo Prata. LEIA:-Elis Regina Carvalho Costa (1945 – 1982) foi tão grande que nunca pareceu caber naquele corpo de 1,53 metro. A voz – imensa pelo volume e, sobretudo, pela rara capacidade de se expressar plena através do canto – tornou a cantora gaúcha infinitamente maior do que se poderia supor quando, em 1965, começou a ser formada a constelação da MPB. O fato é que Elis viveu e cantou muito em meros 36 anos. Contar 18 desses 36 anos em filme de 115 minutos é tarefa ingrata assumida com competência pelo diretor Hugo Prata na cinebiografia Elis, em cartaz em três sessões programadas na atual edição do Festival do Rio. A primeira aconteceu na noite de ontem, 7 de outubro, com a presença do elenco e dos produtores. Com entrada em circuito convencional programada para 24 de novembro, Elis é filme para grandes públicos, sobretudo para quem já conheça, ainda que superficialmente, a trajetória da Pimentinha. Prata foca Elis a partir de 1964 – ano da chegada da cantora ao Rio de Janeiro (RJ), vinda de Porto Alegre (RS), cidade natal onde Elis já era estrela juvenil em escala regional – até 19 de janeiro de 1982, dia da trágica, precoce e inesperada saída de cena da artista.

O roteiro de Luiz Bolognesi, Vera Egito e do próprio Hugo Prata encadeia com agilidade os principais acontecimentos da vida de Elis nesse período em que ela se tornou a cantora referencial do Brasil. Para muitos, a maior cantora do Brasil de todos os tempos. O foco da cinebiografia reside mais na vida profissional do que na trajetória pessoal de Elis. Os conflitos com os pais, por exemplo, são minimizados no roteiro (a mãe sequer aparece em cena). Assim com a diluição do casamento com o pianista Cesar Camargo Mariano (Caco Ciocler, em atuação sensível). Há muitas omissões, sobretudo sobre a carreira fonográfica da cantora e sobre a relação vital de Elis com compositores como Milton Nascimento e João Bosco. Contudo, o filme Elis jamais soa chapa branca como o musical de teatro de 2013 que projetou a atriz Laila Garin, escalada para ser a cantora em cena. Na tela, Prata retrata uma Elis mais crível e humana, com angústias e inseguranças, na medida em que é possível dimensionar corretamente personalidade tão complexa em filme idealizado e direcionado para grandes plateias. E o fato é que o longa-metragem seduz, sobretudo quem não se importa de ver um filme feito próximo da estética de série de TV. A atuação antológica de Andreia Horta como a personagem-título engrandece Elis. Horta é Elis nos trejeitos, nas entonações, no tom da voz, nas mínimas expressões. Salta na tela um grande trabalho de atriz que vai além da (excelente) caracterização.

Quando dubla a cantora nos diversos números musicais, Horta impressiona o espectador tamanho o perfeccionismo do trabalho da atriz. Cabe também destacar no elenco a presença de Julio Andrade, ator camaleônico que encarna o bailarino norte-americano (radicado no Brasil) Lennie Dale (1934 – 1994), nome fundamental para o desenvolvimento da expressão corporal de Elis na década de 1960. Outros atores também brilham, mas a luz do filme é mesmo irradiada por Andreia Horta, hábil ao construir uma Elis ardida como pimenta, mas também frágil – como explicita todo o tenso episódio vivido pela cantora em 1972 com representantes do governo militar instaurado em 1964 – e firme nas posições tomadas. Inclusive as equivocadas. Se o musical de teatro omitiu traços menos nobres de Elis, o filme procura expor a cantora como ela foi. Convivem em cena a cantora eventualmente birrenta, a mãe zelosa, a esposa capaz de trair o marido Ronaldo Bôscoli (1928 – 1994) com Nelson Motta – produtor musical responsável pela guinada estética da discografia de Elis na virada da década de 1960 para a de 1970 – e a mulher que, já perto do fim, acabou atraída pelo falso brilhante das drogas e do álcool. O consumo de tais substâncias fica implícito nas cenas finais porque, ao contrário do musical, o filme conclui a história de Elis Regina, mesmo sem entrar em detalhes sobre a morte da artista.


É certo que muita informação relevante ficou fora do longa-metragem. Mas é injusto crucificar o diretor Hugo Prata por tais omissões, pois a vida folhetinesca de Elis, repleta de viradas, daria até uma novela. Elis, o filme, cumpre a função de mostrar os lances mais importantes dessa vida tão intensa. Possivelmente, Elis Regina tenha sido uma mulher ainda mais densa e instigante do que a retratada no filme. Mas, por tudo que se sabe e que já foi publicado, a essência da artista e da cidadã está lá, iluminada por inspiradas músicas corretamente contextualizadas no roteiro – Arrastão (Edu Lobo e Vinicius de Moraes, 1965), Upa, neguinho (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, 1965), Atrás da porta (Francis Hime e Chico Buarque, 1972), Cabaré (João Bosco e Aldir Blanc, 1973), Velha roupa colorida (Belchior, 1976) e O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc, 1979), entre outras composições emblemáticas na vida e obra da artista – e potencializada pelo trabalho meticuloso de Andreia Horta neste filme tornado grande pela atriz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...