terça-feira, 10 de outubro de 2017

Filme ilumina ideologia e voz de Clara Nunes sem devassar a intimidade da estrela

Há cena no documentário Clara estrela que é a senha para entrar no universo temático desse filme de Susanna Lira e Rodrigo Alzuguir que estreou ontem, 9 de outubro de 2017, na 19ª edição do Festival do Rio. É a cena em que a cantora mineira Clara Nunes (12 de agosto de 1942 – 2 de abril de 1983), ao ser entrevistada em programa de TV comandado pela apresentadora Marília Gabriela, revela que não expõe na mídia a vida particular e que não gosta de ter a intimidade devassada. Projeto existente desde 1998 e viabilizado a partir de parceria entre a Modo Operante Produções e o Curta!, o documentário Clara estrela se situa dentro dos limites propostos pela artista naquela entrevista, iluminando a voz e a ideologia de Clara sem expor a intimidade da estrela, cuja história de vida é contada com clareza na excelente biografia Clara Nunes – Guerreira da Utopia (Ediouro, 2007), lançada há dez anos. Nem por isso, o filme deixa de ser igualmente excelente, de cativar e de emocionar por conta da voz e da ideologia já em si luminosas da cantora.

Embora a voz de Vinicius de Moraes (1913 – 1980) seja ouvida em off em depoimento de 1973 no qual o compositor e poeta carioca avalizava a estrela em ascensão, a única pessoa que fala e que tem a palavra final neste filme narrado e roteirizado na primeira pessoa é a própria Clara Nunes. Clara fala através de trechos de entrevistas concedidas a programas de televisão (em maioria, programas conduzidos com sensibilidade por Marília Gabriela) de reproduções de declarações da artista a jornais e revistas – ouvidas em off na voz da atriz Dira Paes, escolha acertada porque, em alguns momentos, os timbres das vozes de Dira e Clara soam similares – e, sobretudo, do canto resplandescente. É arrepiante quando a tela se ilumina no momento em que o filme mostra Clara cantando na Suécia o samba-enredo Ilu ayê (Terra da vida) (Cabana e Norival Reis, 1972) com o toque da Orquestra Filarmônica de Estocolmo. Essa é uma das imagens mais raras exibidas pelo documentário aberto com a imagem do também raro take do afro-samba Tributo aos orixás (Mauro Duarte e Ruben Tavares, 1972), cantado por Clara com o toque preciso da percussão de Naná Vasconcelos (1944 – 2016). Pontuado por clipes, números musicais de apresentações em TV e entrevistas da cantora, o documentário Clara estrela é roteirizado por Rodrigo Alzuguir em ordem cronológica em narrativa que começa com imagens da artista na mineira cidade natal de Paraopeba (MG), onde viveu uma infância pobre. A presença forte do pai, conhecido como Mané Serrador, é evocada por Clara várias vezes ao longo desse filme que conta a odisseia da então iniciante cantora na cidade do Rio de Janeiro (RJ), onde a artista cantou na noite e onde iniciou em 1966, na gravadora Odeon, uma carreira fonográfica que somente entrou totalmente no tom em 1971, ano em que o radialista Adelzon Alves criou a imagem afro-brasileira à qual Clara ficou associada desde então. Adelzon Alves foi o produtor do álbum, Clara Nunes (1971), que marcou a entrada definitiva da cantora no terreirão do samba. Adelzon foi também namorado de Clara, em caso que fica subentendido em breve depoimento da artista sobre o amor. Já a união com Paulo César Pinheiro, iniciada em 1974 e oficializada em 1975, é celebrada claramente pela cantora. Pinheiro assumiria a partir de 1976 a produção dos discos de Clara, atenuando um pouco a imagem afro-brasileira criada por Adelzon, mas sem afastar a cantora dos santos e orixás que regeram a vida e (parte do) repertório da artista. Quando encadeia em sequência três números em que Clara dá voz ao sucesso que a projetou definitivamente em escala nacional, Conto de areia (Romildo Bastos e Toninho Nascimento, 1974), Clara estrela mostra como a cantora cantava também com o corpo em gestual que valorizava a interpretação. O dueto com o cantor e compositor carioca João Nogueira (1941 – 2000) em Mineira (João Nogueira e Paulo César Pinheiro, 1975), samba feito para exaltar a cantora e por isso mesmo nunca gravado por ela, corrobora a fina sintonia entre voz e gestual que potencializava o carisma e a luminosidade de Clara. Quando Clara estrela termina e rolam os créditos finais ao som do samba Guerreira (João Nogueira e Paulo César Pinheiro, 1978), o mix envolvente de falas e números musicais já deixou aflorar no espectador a emoção e a certeza de que Clara Francisca Gonçalves foi ser de luz. (Cotação: * * * *)

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