quinta-feira, 8 de março de 2012

Em dia especial, transexuais contam que ser mulher é 'questão de alma'

Estudante e cabeleireira narram como é ser mulher em corpos de homens.
'O sexo não pode ser reduzido à genitália', avalia pesquisador da UFBA.

Tatiana Maria Dourado Do G1 BA
“Uma mulher aprisionada em um corpo de homem”, é assim que se sente a universitária Jeane Louise, 19 anos, estudante do 5° semestre de publicidade, em Salvador. Transexual, assim como muitas outras, quer entrar na fila do SUS para realizar cirurgia de mudança de sexo, processo final da reconstrução de sua estética feminina, iniciada ainda na infância.
Jeane Louise (Foto: Tatiana Maria Dourado/G1)Jeane Louise tem 19 anos e estuda publicidade
(Foto: Tatiana Maria Dourado/G1)
“Chega um momento em que sua verdade é muito forte, é questão de alma. Nas brincadeiras de infância, minhas personagens eram sempre do gênero feminino, me refugiava ali. Depois veio a blusa, o cabelo, a calça apertada, o furo na orelha. Em geral, nenhuma transexual sabe que é transexual, é um processo de conhecimento, de acesso à informação”, afirma.
O enfrentamento das pessoas que nasceram homens, mas assumem papéis sociais femininos e lutam para serem reconhecidas pela maioria é vivido por transexuais como Jeane, que remonta a forma física através de hormônios, silicone, implante capilar e outros paliativos como a maquiagem. Mas o desejo de formalizar a transexualização, para ela, só será completa com a alteração do órgão sexual, que pode ser conquistada por meio da cirurgia de transgenitalização, instituída no Brasil em 2008 com a Portaria de número 457, do Ministério da Saúde. Atualmente, a cirurgia é autorizada apenas em quatro hospitais universitários: um da UFRG, Porto Alegre; um da UERJ, Rio de Janeiro; um da USP, em São Paulo; e o da UFG, em Goiás.
Cento e dezesseis brasileiras já passaram pelo procedimento, que consiste na amputação do pênis e construção da neovagina. É preciso, antes, que a mulher transexual passe por etapas preparatórias, que preveem avaliações psicológicas e psiquiátricas, terapia hormonal, avaliação genética e acompanhamento pós-operatório, conforme especifica o Ministério.“Vou concluir o primeiro ano de terapia, a fila é enorme e esse trâmite é muito sofredor. Temos que ser guerreiras para conquistar espaço. Mas sei que vou me sentir realizada. Hoje, quando me olho no espelho, me vejo incompleta, com aquilo que não condiz à minha mente. Ser mulher ou homem está na mente, não é a aparência física”, avalia a estudante.
Jeane Louise (Foto: Tatiana Maria Dourado/G1)Jeane Louise pretende ingressar no serviço público
(Foto: Tatiana Maria Dourado/G1)
Jeane Louise encarou cedo o autoconhecimento e aceitação, mesmo em meio ao coro de “viadinho” que diz ter sido bastante emitido pelos colegas no período em que esteve em uma "escola de padres".
“Eu realmente 'metia a mão' neles e ia para a diretoria. Se continuasse ali, iria entrar em depressão, porque eu chegava no colégio, colocava maquiagem e me mandavam tirar. Era horrível! Pensava: se não puder usar em casa ou no colégio, onde iria usar? Saí de lá, fui para uma escola pública e foi lá que me encontrei de verdade como mulher; o pessoal tinha a cabeça mais aberta”, lembra.Jeane mora com a mãe - os pais são separados - e diz que sabe diferenciar o respeito da aceitação. "Minha mãe teve um filho e até hoje ela não me chama de Jeane dentro de casa. Meu pai era muito machista e me surpreendo com o respeito que me trata. Não digo que me aceitam, mas respeitam e isso já dá força. Faço tudo com os pés no chão”, comenta.
Filha de sargento
A cabeleireira Luana Neves* também luta pela conquista plena de pertencer ao gênero, porém há mais tempo, desde os 18 anos, quando saiu de Mato Grosso do Sul para morar na capital baiana. Neste período, compreendeu que, para ela, mais importante que o processo de transgenitalização seria a retificação jurídica do nome civil. “Tenho convicção de que quero fazer a cirurgia, mas meu principal desejo é o da retificação do nome. Eu evito ir a hospital, banco, fico muito arrasada em relação a isso, porque estou vestida de mulher, mas as pessoas me chamam com meu nome de batismo, não o social, por puro preconceito”, afirma. O projeto de lei 72/07, do deputado Luciano Zica (PV), que prevê a alteração do nome civil para o social nas disposições da Lei dos Registros Públicos (Lei n° 6.015/1973), tramita no Senado e, atualmente, aguarda a designação do relator.
Luana Neves (Foto: Luana Neves/Arquivo Pessoal)Luana sonhou e se frustou com a carreira militar
(Foto: Luana Neves/Arquivo Pessoal)
Filha de sargento do Exército, um dos grandes sonhos de Luana, já tentado e descartado, era o de seguir a carreira militar. Chegou a se alistar, passou em todos os testes, inclusive o psicológico e o de aptidão física, experimentou a roupa no quartel. Até que não resistiu ao incômodo do ambiente e confessou ao general a sua orientação sexual.“Eu tinha no sangue a vontade de seguir carreira na área militar, sempre tive esse sonho, mas, naquela época, me senti muito mal. Estava prestes a assumir uma personalidade que não era a minha”, afirma.
Por vontade, revela que gostaria de ser advogada, no entanto, conta que precisou se condicionar à restrição do mercado de trabalho às transexuais e que é cabelereira não por opção, mas por maior aceitação.
“Quando meus pais saíam de casa, eu colocava a roupa de minha mãe, salto, toalha na cabeça, para fingir que tinha cabelo. Quando a percebia já no portão, jogava tudo aquilo embaixo da cama. Mas eu não sabia em que perfil me encaixava, se era travesti, transexual, drag queen. Eu sempre fui muito fechada e tímida, o que me causou depressão. Eu colocava meus esforços todos no estudo, achava que tinha que estudar para ser uma pessoa de poder”, relembra. Hoje, saias e vestidos, sempre "discretos", são as roupas que mais usa. Já na praia, não abdica de biquínis e cangas.
Ser transexual
O professor e membro do grupo Cultura e Sexualidade, do Departamento de Comunicação da UFBA, Leandro Colling, explica que, para ser transexual, não é preciso concretizar a mudança do sexo necessariamente com cirurgia. “Existem casos em que a pessoa se identifica como transexual e não deseja fazer a completa mudança no corpo. Tem gente que se sente transexual e basta colocar seio, tomar hormônios, para não deixar crescer pêlos; o pênis é o que menos importa. O sexo não pode ser reduzido à genitália, tem a diversidade”, aponta.
Gosto de homem que gosta de mulher, mas nem todo mundo tem coragem de assumir a transexual"
Jeane Louise
Colling, que também é membro do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, órgão do governo federal, explica que categorias como homem ou mulher não devem ser tão rígidas na sociedade. “As pessoas têm ideias fixas nas suas cabeças, mas, se você olhar para a vida, os homens e as mulheres estão cada vez mais borrando essas fronteiras, desde profissões, gestos, produtos, depilação”, relata.A autoestima das transexuais é trabalhada no processo terapêutico, de modo que elas possam enfrentar os entraves culturais, como argumenta a psicanalista Suzana Vieira, 46 anos. Segundo ela, existe uma tendência dessas mulheres ao isolamento e à depressão, que pode ser agravada pela falta de apoio das famílias. “As sensações começam desde a infância e, desde então, as pessoas a veem como um menino, ela também se vê fisicamente como menino, mas lida com desejos de menina e começa a esconder os órgãos sexuais. A terapia ajuda a pessoa a entender tudo isso”, ressalva a psicanalista.

Relação com héteros
Por serem socialmente mulheres, as solteiras Jeane e Luana se relacionam com homens e hoje se afirmam heterossexuais. “Eu dou até risada com alguns homens desavisados. Às vezes você já está em um nível de envolvimento e aí tenho que explicar que sou transexual. Tem alguns que não gostam. Me considero realmente hétero”, comenta. “Gosto de homem que gosta de mulher, apesar de ser complicado porque nem todo mundo tem coragem de assumir uma transexual”, ressalva Jeane.Leandro Colling explica que o gênero não se confunde com a prática sexual. “Ser gay é outra coisa. Existem vários homens que transam com outros e a identidade é heterossexual, a gente precisa respeitar isso. A prática sexual não é um elemento definidor de identidade. Se pessoas se sentem mulheres e transam com homens esse sexo é heterossexual”, acrescenta.

*Optou-se, na matéria, por usar os nomes sociais das transexuais.

Transexuais do DF esperam até seis anos por cirurgia para troca de sexo

Procedimento na rede pública é feito em apenas quatro hospitais do pais.
DF tem 20 pessoas na fila; acompanhamento psicológico é de dois anos.

Rafaela Céo Do G1 DF
 
Sissy Kelly Lopes (esquerda), presidente de entidade de defesa de travestis, transexuais e transgêneros e Bianca Moura de Souza, servidora pública do DF (Foto: Rafaela Céo/G1)Sissy Kelly Lopes (esquerda), presidente de entidade
de defesa de travestis, transexuais e transgêneros, e Bianca Moura de Souza, servidora pública do DF(Foto: Rafaela Céo/G1)
Transexuais do Distrito Federal aguardam até seis anos por uma cirurgia de redefinição sexual no Sistema Único de Saúde (SUS). Dos 30 transexuais, femininos e masculinos, do DF que recebem atendimento psicológico no Hospital Universitário de Brasília (HUB), 20 estão na fila de espera.Para chegar até a cirurgia, geralmente feita em Goiânia – uma das quatro cidades do país com hospital credenciado para o procedimento –, as transexuais passam por um longo acompanhamento psicológico. No HUB, o grupo fundado há dez anos se reúne semanalmente com psicólogos.“Para elas fazerem cirurgia é necessário e importante um laudo psicológico. A gente sabe que há pessoas que fazem [a cirurgia] e não estão preparadas. Isso pode causar um comprometimento grave, porque é uma mudança sem retorno”, diz a psicóloga Sandra Studart, do Programa para Transexuais do HUB.
A portaria que regulamente a cirurgia de redefinição sexual no Sistema Único de Saúde (SUS) é de agosto de 2008. Desde então e até dezembro de 2011, segundo o Ministério da Saúde, 116 procedimentos foram realizados envolvendo a mudança de sexo do tipo masculino para o feminino.Toda minha história sexual envolve a cirurgia. Eu nunca consegui me relacionar 100% com um homem porque a necessidade da cirurgia bloqueia. Já tive um grande amor, vivi casadinha durante quase seis anos. A necessidade da cirurgia, talvez, seja para viver um outro grande amor"Bianca Moura de Souza, servidora pública que aguarda desde 2005 por uma cirurgia no SUS
Seguindo uma determinação da portaria, as operações só podem ser feitas em hospitais universitários. Atualmente, no Brasil há quatro deles atendendo o público transexual feminino – em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Rio Grande do Sul.Para estudiosos de sexualidade, a cirurgia de redefinição sexual não é o ponto primordial para a determinação da feminilidade das transexuais.“Elas se olham no espelho e se veem com toda a indumentária e personificação da identidade feminina, independentemente de terem passado por controle hormonal ou por cirurgia”, explica a assistente social e coordenadora do Núcleo de Atendimento Especializado às Pessoas em Situação de Discriminação Sexual, Religiosa e Sexual (Nudin), Carol Silvério.Algumas transexuais, porém, alimentam o desejo de passar por cirurgia por muitos anos. A servidora pública Bianca Moura de Souza diz que desde 2005 espera para fazer o procedimento. Para ela, feminilidade não depende da intervenção, mas a completaria.“Toda minha história sexual envolve a cirurgia. Eu nunca consegui me relacionar 100% com um homem porque a necessidade da cirurgia bloqueia. Já tive um grande amor, vivi casadinha durante quase seis anos. A necessidade da cirurgia, talvez, seja para viver um outro grande amor”, declarou.Bianca disse que começou a tomar hormônios femininos quando tinha 25 anos. Na época, já era concursada do governo do Distrito Federal e não sabia como os colegas responderiam às mudanças do seu corpo. “Eu trabalho em um ambiente público. Há flores e cartões no Dia das Mulheres. Eu sempre me preocupei se iriam me dar. Ficava até gelada, mas nunca deixaram de me dar”, fala a servidora pública.
Sem fila
A advogada Amanda Figueiredo Bezerra de Menezes, de 32 anos, não quis esperar pelo atendimento na rede pública. Em 2009, ela pagou R$ 18 mil e foi operada pela equipe de Goiânia que atua pelo SUS.
Se eu não tivesse pagado, não teria feito até hoje. Não fiz a cirurgia pelo SUS por falta de vaga, mas eu fiz todo o processo psicológico pela rede pública. Nunca fantasiei a cirurgia, mas minha vida mudou em relação ao meu corpo. Hoje em dia eu tenho uma aceitação muito melhor, eu tenho prazer de ficar nua, de me olhar no espelho, até em uma relação sexual"Amanda Figueiredo Bezerra de Menezes, advogada que pagou para não ter de esperar por cirurgia
“Se eu não tivesse pagado, não teria feito até hoje. Não fiz a cirurgia pelo SUS por falta de vaga, mas eu fiz todo o processo psicológico pela rede pública. Nunca fantasiei a cirurgia, mas minha vida mudou em relação ao meu corpo. Hoje em dia eu tenho uma aceitação muito melhor, eu tenho prazer de ficar nua, de me olhar no espelho, até em uma relação sexual”, conta.Além de conseguir enxergar no espelho um corpo que condiz com sua identidade de gênero, Amanda comemora mudanças na sua documentação pessoal. “Consegui mudar meus documentos, mudei o nome e o gênero, sou legalmente mulher. Isso faz diferença também. Na faculdade, por exemplo, não era chamada de Amanda, apesar da minha aparência, era chamada pelo nome de menino."
'Pela causa'
Para Sissy Kelly Lopes, de 55 anos, fundadora da Associação do Núcleo de Apoio e Valorização à Vida de Travestis, Transexuais e Transgêneros do DF e Entorno (AnavTrans), a cirurgia de redefinição sexual não é uma prioridade.“Acredito que a cirurgia vai de pessoa para pessoa. Algumas pessoas necessitam, pois tem alguma especificidade, outras ficam na dúvida, e outras decidem que não querem. Eu não tinha tempo para pensar na cirurgia, era uma vida muito corrida”, disse.Atuando como prostituta, ela viveu dez anos na Europa. De volta ao Brasil, mudou-se para Brasília em 2005, onde mantém militância pela cidadania das transexuais.“Todas nós passamos por limitações, quebramos barreiras para chegar aonde chegamos, brigamos com a família, sociedade, igreja porque somos mulheres. Mulheres diferentes, não sei, mulheres mal entendidas, não sei, mas somos mulheres.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...