terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Em "Vale Tudo", censura vetou falas de lésbicas, mas liberou maconha

James Cimino

Do UOL, em Brasília


Além do assassino da vilã Odete Roitman (Beatriz Segall), a novela "Vale Tudo" (1988) deixou alguns outros mistérios a serem resolvidos quando terminou como um sucesso de audiência e de crítica em janeiro de 1989. Um deles é sobre o casal de lésbicas da trama. Teria Cecília (Lala Deheinzelin) sido morta por pressão da censura, como se especulou durante anos? Durante a pesquisa feita nos arquivos da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) em Brasília, o UOL pôde constatar que os autores Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Básseres estavam falando a verdade quando disseram que a morte de Cecília já estava prevista desde o início da novela.

De acordo com o perfil do personagem enviado aos censores, Cecília tinha "45 anos, bonita, simpática, irmã de Olivério [esse era o nome provisório do personagem Marco Aurélio, interpretado por Reginaldo Faria]. Mora há 15 anos com uma amiga, Fátima [esse era o nome provisório de Laís, vivida por Cristina Prochaska]. As duas têm uma pousada em Búzios e vivem lá. [...] Morre por volta do capítulo 50. Participação especial." A subtrama pretendia discutir uma questão que ainda não foi totalmente resolvida no Brasil: quem tem direito à herança quando um dos integrantes de uma relação homossexual morre? Na novela, Laís acabou herdando a pousada, embora Marco Aurélio, por pura ganância, quisesse tomar conta da herança que, por lei, lhe era de direito.

Mesmo assim, os censores ficaram de olho no desenvolver da história. Nos arquivos de "Vale Tudo", é possível encontrar diálogos inteiros a respeito do assunto que foram veementemente vetados. Em outro desdobramento da história, especulava-se sobre a homossexualidade de Tiago (Fábio Villa Verde). Ele era filho de Heleninha (Renata Sorrah) com Marco Aurélio e sofria com as pressões do pai machista. O personagem, no entanto, não era gay. Apenas era mais sensível que outros meninos e iniciaria sua vida sexual com sua namorada também virgem. Em um das cenas vetadas, Cecília e Laís perguntam a Heleninha (Renata Sorrah) se ela aceitaria que se seu filho Tiago fosse homossexual. Categórica, a personagem que se tornou notória por seus porres na novela, responde que só queria que seu filho fosse feliz. Em outro diálogo, a mesma Heleninha comenta com Ivan (Antonio Fagundes) que não sabe se pode chamar isso [a suposta homossexualidade do filho] de problema. Em ofício do dia 21 de julho de 1988, o diretor da DCDP, Raymundo Eustáquio de Mesquita, justifica o corte da cena. "A fala da personagem Helena não mostra apenas ‘um desabafo de mãe’, mas apresenta um desvio de comportamento de forma absolutamente natural, isento de problemas, o que sabemos está longe de corresponder à realidade." Cristina Prochaska, a Laís, conversou com a reportagem sobre o episódio. Segundo ela, as cenas escritas sugeriam que as atrizes demonstrassem intimidade, mas que o clima de autocensura nos bastidores era maior.
"A gente era levada a fazer a cena com sensualidade menos evidente para evitar uma censura maior. Lembro de ter lido cena de beijo na boca, selinho, mas não lembro de ter gravado. O público, no entanto, torcia pela Laís. Diziam que sentiam muito e que o direito da herança era ‘meu’. A Laís conquistou o público porque era uma fofa, não era uma sapatão maluca." Maconha e cacofonia O rigor dos censores no corte de cenas era outro dos mistérios de "Vale Tudo". Por exemplo, nos diálogos de Marco Aurélio e de César (Carlos Alberto Riccelli), dois personagens amorais da trama, os autores sempre colocavam a interjeição "porra!" ao início ou ao fim da fala. A censura ia lá e cortava. "Puta", "piranha" e "bicha" também não eram toleradas. A linguagem vulgar tinha a intenção de sublinhar o mau caráter de ambos. COMO PESQUISAR SOBRE CENSURA? Basta marcar horário pelo fone 0/xx/61-3344-8242; o Arquivo Nacional fica no Setor de Indústrias Gráficas, Quadra 6, Lote 800, em Brasília Os autores então, por pura provocação, apelaram para a cacofonia para driblar a tesoura. Não adiantou. Em um dos laudos, os censores exigem corte das falas de Poliana (Pedro Paulo Rangel) em que ele diz: "Pô... Raquel... Pô... Raciocina..." "Foi a época mais criativa da TV brasileira. Não digo que era uma coisa boa, mas, sob pressão, havia um diálogo permanente com a censura. Do tipo: ‘vamos ver se isso você deixa passar’.", contou o autor Aguinaldo Silva, satisfeito ao saber que pelo menos uma de suas provocações funcionou. Em uma das cenas da novela, César aparece manipulando um punhado de maconha. Ao fim da cena, seu amigo Olavo (Paulo Reis) diz: "Passa a bola!". A censura não viu problema por não haver close na droga. Aguinaldo Silva explica o porquê da cena: "Ele era michê, estelionatário, ladrão, golpista e não puxava fumo? Colocamos isso para dar mais veracidade ao personagem." "Vale Tudo" foi a última novela a ser censurada pela DCDP. O órgão foi extinto com a aprovação da Constituição de 1988.

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