sábado, 1 de fevereiro de 2014

Xavier-“Amor à Vida” entra para a história com o beijo gay

Lembra da primeira semana de “Amor à Vida”? Esqueça, aquela é outra novela, que ficou lá em maio de 2013. Se nas primeiras semanas, a atração exibida foi de tirar o fôlego, essa impressão foi se dissipando logo depois. “Amor à Vida”, que causou espanto em sua estreia, pela agilidade em narrativa e tomadas, revelou-se mais uma ordinária novela (no sentido de comum, frequente) de Walcyr Carrasco, com todas as qualidades, vícios e problemas característicos do autor. Só não contabilizei torta na cara, um bom sinal! O texto de Carrasco – que ele exige que seja declamado pelo seu elenco, ipsis litteris o que está no roteiro – ainda é o seu grande problema. Sinta-se subestimado diante de tanto didatismo, repetições exaustivas de palavras e frases, diálogos artificiais e primários, em um tom muitas vezes teatral. Até pode funcionar em uma comédia de época das seis horas, ou em um livro infantil. Mas para o horário nobre, que pede uma trama realista, é preciso maior cuidado. O telespectador não é burro. Não precisa ser lembrado – seis meses depois da novela no ar – que a enfermeira Perséfone é uma enfermeira, que Pérsio é sobrinho de César e que Paulinha foi abandonada em uma caçamba. “Caçamba? Sim, caçamba!” O humor carrasquiano – outra marca indelével do autor – esteve onipresente. Combinado com o seu texto, soou infantil muitas vezes, quando não sem graça. Várias sequências e personagens resvalaram na comédia digna de programas de humor populares e de gosto duvidoso.

Outro cuidado que o autor precisa ter. Alguns acham graça, mas não é unanimidade. Neste quesito, tivemos a estreia de Tatá Werneck na Globo. Excelente em personagens divertidas na MTV, a atriz cansou com sua Valdirene, em situações repetitivas, em idas e vindas sem fim. Esses esquetes humorísticos funcionam em um programa semanal. Mas não dentro de uma novela, diariamente, durante oito meses seguidos. Tatá brilhou mesmo em sua rápida participação na casa do BBB – não por acaso, a comediante esteve livre do texto de Carrasco e mostrou todo o seu poder de improvisação. Alguns personagens, quando não totalmente desnecessários e sem trama (como o quadrilátero Patrícia-Michel-Silvia-Guto) tiveram tantas modificações de personalidade ao longo da trama quanto pedia o roteiro. Ninho (Juliano Cazarré) é um deles, que foi se transformando de acordo com as situações novas que o autor criava. Sim, as pessoas mudam ao longo da vida. Mas onde fica a estrutura psicológica do personagem, sua identidade e a coerência narrativa da trama? Ninho se tornou um personagem mal costurado, uma espécie de Frankenstein da Teledramaturgia brasileira. Na melhor das hipóteses, não passou de um coringa nas mãos do autor, um tipo que ele podia usar a qualquer momento em alguma nova situação criada. Perséfone foi outra personagem problemática de “Amor à Vida”. O autor perdeu uma excelente oportunidade de abordar de forma consistente o bullying pelo qual passam obesos e gordinhos. A personagem de Fabiana Karla sofreu toda espécie de humilhação gratuita, desnecessária e sem graça para, quando finalmente se casar com um príncipe encantado (seu sonho), voltar à estaca zero. Isso sem falar no malfadado “bigodinho” (a depilação íntima) da personagem, uma piada que descambou para o mau gosto. Assim como Tatá Werneck, Fabiana Karla foi outro talento desperdiçado com uma personagem que só cansou. Além do bullying, pipocou por “Amor à Vida” toda sorte de temas interessantes que poderiam ter gerado debates e campanhas construtivas, mas que acabaram soando avulsos e desconexos com a trama da novela, quando não mal aproveitados. O autor abordou barriga solidária, adoção, racismo, amor na terceira idade, incentivo à leitura, virgindade, bigamia, assédio moral, a questão palestinos x judeus, além de toda uma gama de doenças (lúpus, câncer, Aids, autismo, alcoolismo, etc). Se a intenção era informar, didaticamente, até conseguiu a contento. Mas a maioria desses temas foi abordada de forma superficial, an passant, sem se aprofundar ou concluir – diferente de outras novelas, em que o autor toma um ou dois temas, vai a fundo e consegue trabalhar uma campanha de forma eficiente. O que aconteceu com a enfermeira que descobriu ter Aids? – além de uma das sequências mais bizarras da novela: quando os vários parceiros dela recebem os seus resultados de exame de HIV. As indicações de livros, longe de alguma campanha em prol da leitura, soaram como o mais puro merchan – ficou tão gratuito no ar que virou piada na Internet. Destaco ainda o controverso autismo da personagem Linda (a ótima Bruna Linzmeyer), tratado com toda liberdade (criativa e poética). Valeu pela abordagem inédita do tema, que despertou o interesse do público. Ainda mais através de uma personagem carismática, tão bem defendida por Bruna Linzmeyer. E concordo com o desfecho que o autor deu a Linda: se a família (responsável por ela) é a favor do casamento, qual o problema? Foto Divulgação/TV Globo Foto Divulgação/TV Globo Mas nem tudo foram espinhos em “Amor à Vida”. Vamos dar os louros a Walcyr Carrasco, que ele merece. O cara é mestre em prender o público com suas tramas rocambolescas e cheias de reviravoltas – em minha opinião, sua maior qualidade como novelista e o seu segredo de sucesso. Com ótimos ganchos, alguns capítulos-chave e sequências de impacto, o novelista conseguiu manter o interesse de seu público cativo por oito meses seguidos. E sem barriga (aquele momento da trama em que nada acontece), mesmo tendo que espichar a novela. Carrasco alcançou, inclusive, o feito de levantar o Ibope do horário das nove da Globo. “Amor à Vida” não foi nenhum fenômeno de audiência, mas tampouco fez feio: fecha com uma média final de 36 pontos no Ibope da Grande São Paulo – mais que a antecessora, “Salve Jorge” (que fechou em 34) e menos que “Avenida Brasil” e “Fina Estampa” (39 as duas). Contribuindo para esse sucesso, a direção eficiente de Mauro Mendonça Filho e sua equipe e o talento de alguns excelentes atores, como Elizabeth Savalla (a melhor atriz de 2013, irrepreensível como a ex-chacrete Márcia), Vanessa Giácomo (como a vilã Aline) e Mateus Solano (Félix). Muito da repercussão de “Amor à Vida” se deve à interpretação de Solano, de vilão “bicha má” ao regenerado mais amado do Brasil. Félix não foi o primeiro vilão gay de nossas novelas: esse posto pertence a Mário Liberato – Cecil Thiré em “Roda de Fogo” (1986-1987). Mas, desde a primeira aparição da “bicha má”, os elogios vieram de toda parte. E merecidos. Beirando a caricatura, com língua ferina e frases de efeito, Félix foi construído para ser daqueles personagens carismáticos que arrebatam o povo. Mesmo que a mudança em sua personalidade tenha sido questionável. Ao final, só faltou Félix ser canonizado pelo Papa, Mas, nenhum psicopata (capaz de atrocidades, como jogar um bebê em uma caçamba e planejar assassinatos e sequestros) muda da água para o vinho sem manter algum traço de suas características doentias. Entretanto, a redenção de Félix é válida e tem um lado positivo dentro da trama da novela. Nunca a homossexualidade foi discutida de forma tão abrangente e clara dentro de um folhetim. Este, talvez, tenha sido o maior feito e contribuição de “Amor à Vida”. Se Carrasco tratou vários temas de interesse social de forma rasa (citados acima), ao abordar a homossexualidade, através de Félix, o autor acertou em cheio e conseguiu levantar uma discussão importante. A novela que melhor havia abordado o tema foi “Insensato Coração” (2011). Carrasco, ao escancarar o preconceito de um pai homofóbico (César de Antônio Fagundes) contra seu filho afeminado, tocou na ferida por um viés diferente. Foi didático, mas não menos eficiente. O vilão psicopata, afinal, tinha uma razão para ser mau – ainda que esta razão não justificasse suas vilanias. O público, tomado de compaixão, entendeu que ele merecia o perdão. A regeneração de Félix trouxe consigo outro fato interessante em “Amor à Vida”. Lá pela metade da novela, os conflitos do casal romântico central – Paloma e Bruno (Paolla Oliveira e Malvino Salvador), se não estavam resolvidos ou esvaziados, dependiam unicamente de Félix. Foi quando vimos a “bicha má” tomar o posto de protagonista de Paloma e Bruno, que, a essa altura, já era um casal insosso e sem torcida do público. Não foi a primeira vez que um coadjuvante roubou a posição do protagonista: em “Viver a Vida” (2009-2010, de Manoel Carlos), Luciana, a personagem tetraplégica de Alinne Moraes, suplantou a Helena vivida por Taís Araújo. A bem da verdade, Félix era o protagonista de “Amor à Vida” desde o início: um vilão que regenerou-se. E, com o protagonismo de Félix, um fato inédito: pela primeira vez, o público passou a torcer por um casal protagonista gay. Carrasco teceu sua teia de forma tão engenhosa que fez Félix, que já era querido, se envolver com o gay bonzinho da história, Niko (Thiago Fragoso), arrebatando o público. Foi o golpe de misericórdia. Niko, de bom coração, tinha o sonho de ser pai, sofreu horrores nas mãos de Amarylis e Eron (Danielle Winits e Marcelo Antony), e era um tanto quanto ingênuo e puro. O público aprovou a relação, Félix estava em boas mãos. A química dos atores também ajudou, em bonitas cenas de envolvimento emocional, que dispensaram maiores contatos físicos. Até que, no último capítulo, a Globo decidiu pelo tão esperado e cobrado beijo gay em sua novela do horário nobre. Outras emissoras, já apresentaram, faltava apenas a Globo se render. E, diante do sucesso de Félix e Niko, a trama de Walcyr Carrasco – importante pela sua repercussão e penetração nos lares brasileiros – entrou para a história de nossa televisão com uma belíssima cena final, que teve beijo gay e a reconciliação do pai homofóbico com seu filho afeminado.

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