James Cimino
Do UOL, em Brasília
"Tô certo ou tô errado?", dizia o pecuarista Sinhozinho Malta chacoalhando suas várias pulseiras de ouro na novela "Roque Santeiro", proibida de ir ao ar em 1975 e liberada somente dez anos depois pela censura. O cacoete, que virou bordão nacional em 1985, era usado pelo personagem para demonstrar sua autoridade, ou melhor, seu autoritarismo perante a sociedade de Asa Branca, cidade fictícia onde se passava a história.
O gesto ligado à imposição de sua vontade não foi fruto do acaso, segundo disse um dos autores da trama, Aguinaldo Silva.
O gesto foi "inspirado" em uma famosa censora, Solange Teixeira Hernandes, que foi diretora do Departamento de Censura a Diversões Públicas (DCDP) entre 1980 e 1984.
Neste quarto episódio da série especial sobre censura às novelas, o autor relata o encontro um tanto surreal ocorrido entre os dois em Brasília, além de outros detalhes sobre essa novela, que foi um dos maiores sucessos da televisão brasileira ao fazer uma crítica à construção de mitos e o seu uso pelos poderosos para obter ganho econômico, alienar o povo e, assim, manter seu poder. Leia a entrevista:
Aguinaldo Silva – A única vez que eu fui a Brasília foi por causa de um episódio da "Quarta Nobre" [programa extinto da TV Globo que exibia casos especiais]. O programa contava a história de uma família que tinha uma empregada a quem ninguém dava atenção. Ela era muito solitária, portanto, e acabava conversando o tempo todo com o gato. Quando o roteiro do episódio voltou, vimos que todas as cenas do gato haviam sido cortadas.
O Boni me chamou e perguntou o que significava aquilo. Eu disse que não sabia e então formamos uma comissão que incluiu, além de mim, o Euclydes Marinho, o Doc Comparato, o Lauro César Muniz e mais algumas pessoas que eu não me lembro. E aconteceu uma coisa bizarra. O avião despressurizou e as máscaras não caíram, aí o piloto teve que pousar em uma cidade próxima a Brasília para que pudéssemos respirar. De lá fomos de carro para o encontro. Inclusive chegamos meio perturbados pelo incidente e todo aquele espírito de contestação que vinha conosco se escapou junto ao oxigênio do avião (risos).
E como foi o encontro?
A doutora Solange – eles todos adoravam ser chamados de "doutores" – nos recebeu em uma mesa grande e ela usava muitas pulseiras no braço. Ela obviamente se sentava à cabeceira e toda vez que perguntávamos o porquê de um corte, ela começava a responder e balançava as pulseiras, de uma maneira a distrair nossa atenção. Então, quando eu estava escrevendo "Roque Santeiro", coloquei esse cacoete no Sinhozinho Malta, exatamente nos momentos em que ele queria sublinhar sua autoridade perante os outros personagens. Então, embora muita gente reclame a "paternidade" desse gesto, fui eu quem o inventou pensando na "doutora" Solange.
E a história do gato?
Ah, sim! A história do gato... A gente estava lá, aí o Lauro pedia que eles reconsiderassem uma cena tal, o Boni discutia outra, e a doutora Solange sempre com aquela cordialidade intimidatória, sem nunca esquecer de balançar as pulseiras, claro, e eu ainda meio zonzo da despressurização. Aí uma hora eu respirei e falei: "Mas vocês cortaram o gato do meu especial!" Entreguei o roteiro a ela, ela olhou quem tinha assinado o laudo e mandou chamar a outra censora. Ela perguntou por que, afinal, as cenas do gato tinham sido cortadas. A censora virou e disse: "Ah, doutora Solange...
Uma empregada falando com um gato? Aí tem!"
Nos documentos de "Roque Santeiro", há muitos pedidos de cortes em cenas que insinuam que o personagem João Ligeiro [Maurício Mattar] era homossexual. No meio da trama, inclusive, ele morre. Foi a censura que mandou matar?
De certa forma sim. Na sinopse original, o João Ligeiro era um homem que ficava grávido. O Dias Gomes, que é o criador da história e escreveu apenas os primeiros e os últimos capítulos da história, adorava esse tipo de personagem. Posteriormente se descobriria que ele era, na verdade, uma mulher que foi criada como homem...
Como o Diadorim do livro "Grande Sertão: Veredas"?
Exatamente! Mas os censores não permitiram. Então eu resolvi que ele seria gay. Mas censura de novo não deixou. Aí resolvi matá-lo, já que ele tinha perdido a função na história.
Há um diálogo que pediram para cortar em que Ninon [Claudia Raia] chama o lobisomem [Ruy Rezende] de "meu bichinho peludo".
Era a linguagem da época (risos). A gente não podia dizer as coisas claramente. Era uma época de muitas aparências. A gente escrevia e pensava: "vamos ver se passa". Mas era uma época criativa, não digo que tenha sido uma coisa boa, mas era desafiador. Cada coisa que passava, a gente comemorava.
Há quem diga que a censura não acabou, você concorda?
Hoje em dia temos a censura do politicamente correto. Que é até pior. Eu estou sendo processado por um cidadão, um advogado, porque chamei alguém de "paraibinha". Isso é uma questão de falta de humor.
Desse encontro com os censores, o que você percebeu sobre eles?
Os censores eram entidades. Pareciam estar acima de tudo e de todos. A impressão que me deu deles é que eles se consideravam profissionais que acreditavam prestar um serviço bastante importante para a sociedade. E parte da sociedade também acreditava nisso. Ainda hoje tem, inclusive.
Qual foi sua primeira novela pós-censura?
Foi "Tieta".
E como foi escrever essa novela?
Foi uma catarse. Eu pude escrever tudo que eu quis. A gente sabia pela primeira vez nada iria ser cortado.
Só que aí começou outra fase. Até onde eu posso ir?
Lembro-me que quando Tieta voltava já rica a Santana do Agreste, o bêbado da cidade olhava para ela e dizia: "Isso num é mulé! É uma plantação inteirinha de xibio*!" Você acha que esse diálogo passaria durante a censura? Essa palavra não é muito conhecida, afinal...
De jeito nenhum! As palavras desconhecidas eram as primeiras que eles suspeitavam...
E qual novela sua exibida pós-censura não seria exibida naquela época?
"A Indomada", que era uma história de vingança, não passaria. O prólogo de "Senhora do Destino", que mostrava o golpe militar de 1964 obviamente não. O Crô [Marcelo Serrado, em "Fina Estampa"] é um personagem que eles nunca aprovariam. E a Nazaré [Renata Sorrah, em "Senhora do Destino"] eles iam mandar cortar tudo, até a escada em que ela empurrava seus desafetos (risos).
E a caixa da Perpétua [Joana Fomm, em "Tieta"]?
A caixa da Perpétua talvez passasse, porque quem especulava sobre o fato de ela guardar o pinto do marido era o público. Não havia qualquer citação a isso na trama.
E era o pinto do marido que ela guardava?
Eu mesmo não sabia o que tinha naquela caixa. No livro do Jorge Amado isso era citado de passagem, em apenas uma linha. Eu que aumentei na novela. Só que o público falou tanto que era que só podia ser, né? (gargalhadas)
"Roque Santeiro" foi a primeira novela proibida de ir ao ar pela censura. A justificativa ao veto foi a de que os militares tinham posto escutas telefônicas na casa do autor Dias Gomes e interceptaram uma conversa em que ele dizia que a história era a mesma de uma peça sua, "O Berço do Herói", vetada anteriormente pela censura. No entanto, segundo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, a trama foi impedida de ir ao ar por conta de uma briga entre o ministro da Justiça Armando Falcão com Roberto Marinho. Para saber mais sobre a história dessa novela, clique aqui.
*De acordo com o dicionário Houaiss, a palavra xibio é um regionalismo nordestino para o substantivo vulva. Em outras regiões do Brasil é um substantivo para diamantes pequenos usados para cortar vidro.
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