quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Tarantino mostra escravidão sem concessões em "Django Livre", seu faroeste espaguete

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

Depois de mostrar sua versão de gêneros como filmes de guerra (“Bastardos Inglórios”), de artes marciais (“Kill Bill”) e de terror B (“À Prova de Morte”), Quentin Tarantino agora homenageia o faroeste, mais especificamente o faroeste espaguete, subgênero mais violento, desenvolvido principalmente na Itália, em que o herói (ou anti-herói) é movido por motivos menos nobres, como vingança e fortuna. "Os brancos me xingavam quando eu era pequeno", relembra Jamie Foxx, que cresceu no que chama de ambiente "racialmente carregado" de Terrell, no estado norte-americano do Texas. "Eu tive que lidar com isso. E justamente por ter acontecido comigo, consegui entender bem o conteúdo do roteiro de 'Django'." Em “Django Livre”, o escravo Django (Jamie Foxx, de “Ray”) é resgatado pelo caçador de recompensas Dr. Schultz (Christoph Waltz, de “Bastardos Inglórios”), que procura três ex-feitores da fazenda a que ele pertencia. Em troca de ajuda na caçada a alguns dos fugitivos mais procurados do Texas, Schultz promete libertar Django e ajudá-lo a encontrar sua mulher, Broomhilda (Kerry Washington, de “As Mil Palavras”). A busca leva os dois até Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), um fazendeiro do Mississipi aficionado por Mandingo --espécie de luta livre até a morte entre escravos--, que pode ser a chave para encontrar Broomhilda.

O nome do anti-herói de Tarantino é uma referência a “Django” (1966), filme de Sergio Corbucci estrelado por Franco Nero, que faz uma participação especial na produção. O faroeste espaguete --um dos mais influentes do gênero, ao lado dos filmes de Sergio Leone--também é lembrado por meio de sua música-tema, que abre o longa de Tarantino, e em uma cena hilária, que satiriza um grupo de membros do Klu Klux Klan e ressoa a famosa sequência em que o Django de Nero enfrenta membros da organização racista usando a metralhadora que guarda em um caixão. Polêmica Tarantino não se atém ao politicamente correto e usa e abusa da palavra “nigger” (“negro” ou “preto”, com conotação negativa), um tabu para os americanos, que costumam referir-se a ele como “the ‘n’ word” (“a palavra ‘n’”) em vez de pronunciá-la. O termo aparece 110 vezes durante o filme, e não são só os personagens brancos que a pronunciam. Ela é usada pelo próprio Django com frequência e, em especial, pelo personagem de Samuel L. Jackson, Stephen, um escravo doméstico e dedicado a seu senhor --figura conhecida como “pai Tomás” (ou “uncle Tom”, em inglês)--, tão cruel com seus pares quanto os brancos. Além de usar a palavra proibida, o cineasta também se atreve a mostrar sem censura violências terríveis praticadas contra os personagens negros --em uma cena, vemos dois escravos lutarem até a morte de um deles, incitados por Calvin (DiCaprio); em outra, um escravo fugitivo é destroçado por cachorros. Estas e outras ousadias renderam ao filme críticas contundentes por parte da comunidade negra, incluindo o cineasta Spike Lee, que escreveu no Twitter: “A escravidão americana não foi um faroeste espaguete do Sergio Leone. Foi um holocausto. Meus ancestrais são escravos. Roubados da África. Eu vou honrá-los”.

A verdadeira polêmica aqui é o retrato que Tarantino traça da escravidão e do racismo nos Estados Unidos de 1858, dois anos antes da Guerra Civil, mas alguns críticos ainda batem na tecla da violência e apontam como excessivas as cenas de membros estraçalhados por tiros e sangue que jorra para todos os lados. Por outra ótica, a vingança do ex- escravo Django contra os brancos escravizadores pode ser vista como tão catártica quanto a caçada por nazistas e o assassinato de Hitler em “Bastardos Inglórios”. A discussão em torno do tema é complexa e espinhosa. Mas uma coisa é certa: “Django Livre” pretende ser exatamente o que Lee aponta --um faroeste espaguete, com uma boa história de vingança, protagonizada por um escravo liberto e tendo a escravidão como pano de fundo, mas ainda assim um faroeste espaguete. Além disso, Tarantino não é conhecido por mostrar o melhor lado de seus personagens. Oscar, atuações e trilha A ousadia rendeu ao filme dois Globos de Ouro (melhor roteiro original e melhor ator coadjuvante) e cinco indicações ao Oscar, incluindo melhor filme --roteiro, fotografia, edição de som e ator coadjuvante (Christoph Waltz) completam a lista. No mais, “Django” é Tarantino como todos conhecem. Ele mais uma vez mostra seu talento como diretor de atores, extraindo uma performance memorável de Christoph Waltz, que ganhou um Globo de Ouro e está indicado ao Oscar como ator coadjuvante com seu eloquente Dr. Schultz, uma espécie de coronel Landa que trabalha para o lado certo. Leonardo DiCaprio também merece destaque com seu odioso e mimado Calvin Candie, que não impediu o ator de ser esnobado pelo Oscar mais uma vez.

No entanto, o maior injustiçado desta temporada de premiações talvez tenha sido Samuel L. Jackson, o mais frequente colaborador de Tarantino, que consegue roubar a cena entre tantos astros com seu Stephen, ao mesmo tempo ardiloso e servil e desprovido de solidariedade pelos outros escravos. A trilha sonora é outro ponto alto, como de costume. Ela é encabeçada por uma “colaboração” póstuma entre James Brown e 2Pac em "Unchained (The Payback/Untouchable)" e completada por quatro faixas de Ennio Morricone, o compositor de trilhas de faroeste espaguete por excelência, incluindo a inédita “Ancora Qui”. Também contribuíram com novas canções para o filme John Legend (“Who Did That to You?”), Rick Ross (“100 Coffins”, produzida e interpretada por Jamie Foxx) e Anthony Hamilton e Elayna Boynton (“Freedom”), marcando a primeira colaboração de Tarantino com artistas para criar música original para um filme seu.


 

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